Os apostadores terão uma plataforma de autoexclusão em todas as casas de apostas autorizadas a operar no Brasil
Por Felipe Crisafulli

Em O Capital, Karl Marx exclamou que o caminho para o inferno é pavimentado com boas intenções. Essa ideia pode resumir bem o contexto em que celebrado, entre os Ministérios da Saúde e da Fazenda, o acordo de cooperação técnica para instituir o Observatório Saúde Brasil de Apostas Eletrônicas, destinado a promover formas de prevenção e cuidado com a saúde de pessoas com problemas relacionados a jogos e apostas.
De agora em diante, qualquer apostador terá à sua mão uma plataforma de autoexclusão em todas as casas de apostas autorizadas a operar no País.
A partir de sua conta Gov.br (nível prata ou ouro), o usuário poderá bloquear o próprio acesso a esses sites, por períodos que variam de 1 a 12 meses ou mesmo por prazo indeterminado, com a possibilidade de declarar o motivo de sua decisão, entre os quais saúde mental, dificuldade financeira ou decisão voluntária.
O acordo de cooperação técnica, entretanto, tem mais outro escopo: o compartilhamento de informações sobre jogos e apostas, a fim de melhor direcionar os esforços e recursos destinados ao combate à compulsão dos usuários.
O objetivo é tratar o vício em apostas e jogos on-line como problema de saúde pública, com políticas de redução de danos e proteção aos vulneráveis, de forma similar aos tratamentos de dependência em outras esferas, buscando prevenir danos psíquicos, financeiros e sociais.
Para tanto, o Governo Federal, a partir do Observatório Saúde Brasil de Apostas Eletrônicas, monitorará diversos dados vinculados ao CPF dos usuários, entre os quais os valores apostados, o total das perdas, o tempo despendido nos sites e os eventuais impactos nas atividades laborais e no convívio familiar.
Nesse contexto, emerge o seguinte exame jurídico-crítico: trata-se, essa iniciativa, de medida legítima e razoável, ante os direitos e garantias individuais de todo cidadão?
Consagrado no pós-Segunda Guerra Mundial, o princípio da proporcionalidade funciona como limitador da atuação estatal, configurando instrumento à luta contra o poder legiferante do Estado e suas ações contrárias a todo e qualquer ideal de proteção aos direitos dos indivíduos.
Representa, pois, a vedação do excesso para fins de restrição de direitos, mormente de direitos humanos, como é o caso da liberdade, da intimidade e da privacidade – que constituem o âmago da proteção aos dados pessoais –, todos de cariz constitucional e devidamente positivados como direitos fundamentais no País.
A proporção, portanto, configura condição de legitimidade/legalidade/constitucionalidade da norma ou conduta em causa. Noutras palavras, uma medida que se mostre excessiva ou não passível de justificação deixa de ser proporcional e se torna ilegítima/ilegal/inconstitucional.
O triplo teste da proporcionalidade, mundialmente propagado a partir da jurisprudência da Corte Constitucional alemã, ganha especial relevo neste cenário. Tal decomposição da proporcionalidade exige que se avalie se determinado comportamento respeita tal postulado a partir de três óticas, a da adequação ou pertinência, a da necessidade e a da proporcionalidade em sentido estrito (ponderação).
Essencialmente, a limitação legal ou regulamentar a direitos fundamentais apenas será válida se, no caso concreto, ela se mostrar: (i) adequada ou pertinente, isto é, apropriada, idônea, apta ao alcance do objetivo esperado; (ii) necessária, significando dizer que, se houver meios igualmente convenientes e menos onerosos, gravosos ou prejudiciais, deverão ser estes empregados; e (iii) proporcional (com justa medida) aos fins colimados, ou seja, na ponderação e sopesamento entre as vantagens e desvantagens promovidas pela dita restrição, aquelas hão de superar estas.
Nesse contexto, o princípio da proporcionalidade denota que esse tipo de limitações a direitos e garantias fundamentais apenas pode ser posto em prática quando adequado e necessário para, em seus estritos limites, salvaguardar direitos, garantias ou interesses legal ou constitucionalmente protegidos, independentemente se de natureza individual ou coletiva.
Ainda que o atuar do Estado esteja devidamente legitimado, não pode ele sacrificar liberdades individuais sem justificativa válida e razoável, sob pena de, ao não valorar precisamente os prós e contras de sua decisão, acabar por causar danos outros aos cidadãos.
Entre os direitos, garantias ou interesses que pretende proteger com determinada medida – concretamente, em relação ao monitoramento de apostadores, a saúde mental, financeira e congêneres dos apostadores – e outros direitos, garantias ou interesses tutelados pela legislação pátria – no caso, a liberdade, intimidade, privacidade, autonomia individual, proteção de dados pessoais, etc. –, dever-se-á procurar minimizar a intervenção, a fim de mitigar eventuais prejuízos.
É esse o raciocínio que deve ser aplicado à nova plataforma estatal, referida no início do presente artigo, em particular no que tange ao monitoramento de dados pessoais – sensíveis ou não – dos usuários de sites de apostas de quota fixa. A ponderação entre o interesse público (proteção à saúde, prevenção de danos à pessoa vulnerável) e os direitos individuais (autonomia, privacidade, proteção de dados) há de vir sempre à primeira hora.
Afinal, ao mesmo tempo em que se reconhece que, no plano constitucional e de políticas públicas, o Estado tem competência para promover a saúde, prevenir dependências e adotar medidas de “redução de danos” – sempre que justificadas, lembre-se –, contexto no qual se inserem, a priori, as medidas acima explicitadas, igualmente verdadeiro é que diversos outros comportamentos humanos são também passíveis de desencadear males os mais variados.
Nem por isso, no entanto, essas outras atividades humanas, tão ou mais suscetíveis a esse tipo de (perversas) consequências, geram invasões semelhantes aos direitos fundamentais de liberdade, intimidade e privacidade assim como ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural – bens jurídicos tutelados pela legislação de proteção de dados no Brasil –, a partir da coleta de informações individuais as mais variadas, sob o pretexto da (prévia e apriorística) proteção do cidadão.
Assim, ante os desafios no campo da privacidade, proteção de dados pessoais e prevenção ao abuso estatal – especialmente pela identificação a partir do CPF e pelo monitoramento sistemático de informações dos apostadores, entre as quais seus registros de comportamentos, detalhes financeiros e hábitos pessoais –, espera-se que o Estado brasileiro saiba dosar o seu afã regulatório e fiscalizatório, eximindo-se de redundar numa sanha persecutória e invasiva sobre seus administrados.
Deter essa ampla monta de dados dá margem a usos secundários imoderados. Sem garantias claras, há risco de violação da privacidade, uso para finalidades distintas, indevidas e/ou não consentidas pelo usuário, além de estigmatização dos apostadores.
Ater-se à mera prevenção e contenção de danos, em verdadeira e efetiva proteção dos vulneráveis (pessoas com dependência do jogo, histórico de abuso, hipossuficiência, fragilidades mentais ou psíquicas, etc.), em particular dos silenciosos ou invisíveis, que são aqueles que não percebem que se encontram nessa condição – ou não se aceitam como tal – e seguem padecendo desses males, em verdadeira espiral, será, portanto, a chave do sucesso da medida, no que tange ao respeito aos direitos e garantias constitucionais de cada indivíduo.
Afinal, conforme preconizou Jellinek, em verdadeira lição acerca do princípio da proporcionalidade durante simpósio sobre Direito de Polícia, em 1791, na França, não se abatem pardais disparando canhões.
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