A reivindicação da sociedade pela unificação das diversas bases cadastrais de identificação civil adotadas pelas entidades e órgãos governamentais tem como escopo atender o postulado da desburocratização, além de ganhos em eficiência e segurança.
Com efeito, o modelo de administração pública contemporâneo tem elevado apreço pelo princípio da eficiência. Cabe ao administrador atender às necessidades e anseios da coletividade com observância dos critérios do melhor aproveitamento e menor despesa possíveis.
Da eficiência decorre a desburocratização, que encerra o conjunto de medidas tendentes à racionalização e simplificação dos trâmites procedimentais. Neste sentido, o Decreto Federal nº 8.414, de 2015, criou o Programa “Bem Mais Simples Brasil”, com a proposta de reduzir formalidades e exigências na prestação de serviços públicos e de promover a integração dos sistemas de informação pelos órgãos públicos para oferta de serviços públicos, dentre outras.
Em verdade, a Lei nº 9.454, de 1997, que institui o número único de registro de identidade civil (RG) já estabeleceu as diretrizes iniciais para a centralização e controle do Cadastro Nacional de Registro de Identificação Civil. Previu, inclusive, a formação de convênios entre a União e os Estados para a implementação do número único de registro de identificação civil e a criação de um órgão central, responsável pelo controle do cadastro.
Não obstante, em meados de 2015 o Governo Federal, por intermédio do Ministério da Justiça e o Tribunal Superior Eleitoral, em esforço conjunto, elaboraram a minuta da redação de um Projeto de Lei prevendo a criação do denominado Registro Civil Nacional – RCN.
A proposta era ousada, pretendia promover a interoperabilidade entre as bases de dados biométricos da Justiça Eleitoral, a base de dados do Sistema Nacional de Informações de Registro Civil –SIRC, e outras informações constantes das bases de dados da própria Justiça Eleitoral e outros órgãos públicos.
A finalidade seria a criação de um documento de Registro Civil Nacional, para identificação do brasileiro desde o seu nascimento, com fé pública em todo o território nacional. Dessa forma, o referido documento faria prova de todas os dados nele incluídos, dispensando a apresentação dos documentos que lhe deram origem.
Tão logo foi encaminhada ao Congresso Nacional pela Presidência da República a proposta suscitou debates e, sobretudo preocupações, quanto aos seus efeitos sobre a atividade desenvolvida pelos Oficiais de Registro Civil de Pessoas Naturais.
O projeto, como exposto anteriormente, previa a utilização da base de dados do Sistema Nacional de Informações de Registro Civil para elaboração do documento unificado, sem, contudo, estabelecer uma contrapartida econômica aos Oficiais de Registro Civil. Ao revés, a redação do artigo 4º garantia a gratuidade do acesso pelos Poderes Executivos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Outro aspecto apontado foi a ausência de representante dos Serviços Extrajudiciais no comitê responsável pela gestão das informações do banco de dados integrado. Ora, ninguém mais apto a coordenar e gerir as informações contidas no cadastro de um registro civil nacional do que o profissional com atribuição legal para registrar os diversos atos da vida civil do cidadão brasileiro.
Enfim, causa estranheza a previsão de um Registro Civil Nacional e a elaboração de um documento de identificação com abrangência nacional através de um órgão do Poder Judiciário de estrutura centralizada e com baixa ramificação de pelo país (presente apenas nas sedes de comarcas).
Dado que o objetivo é promover eficiência e consagrar medidas desburocratizantes faria mais sentido aproveitar a estrutura dos serviços extrajudiciais, de notória qualidade e qualificação, além de já contemplarem estrutura orgânica formada em todos os municípios do país.
O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados com 4 (quatro) emendas ao texto original.
A redação enviada ao Senado Federal contempla a criação da Identificação Civil Nacional (ICN) e não mais do Registro Civil Nacional, visando estabelecer uma distinção necessária entre as finalidades decorrentes da atividade realizada pelos Ofícios de Registro Civil de Pessoas Naturais e o cadastro da Identificação Civil Nacional (ICN).
Com a alteração previu-se também a instituição do Fundo da Identificação Civil Nacional (FICN), gerido e administrado pelo Tribunal Superior Eleitoral, com a finalidade de constituir fonte de recursos para o desenvolvimento e a manutenção da Identificação Civil Nacional e das bases por ela utilizadas.
Ideal seria que se previsse expressamente o repasse obrigatório ao Sistema Nacional de Informações do Registro Civil Nacional, como forma de custear seu operacionalização. Contudo, a medida deverá ser implementada posteriormente por decreto regulamentador que estabelecerá o modo de realização destes repasses.
Neste aspecto, vale ressaltar que a dispensa de ônus concedida pelo art. 41 da Lei 11.977, de 2009, ao Poder Judiciário e Executivo Federal pela utilização do sistema de registro eletrônico dos serviços dos registros públicos não impede que estes órgãos colaborem com a manutenção do mesmo.
Ademais, do texto do projeto também pode-se destacar a redação do §3º do artigo 7º, que estabelece a atribuição da Justiça Eleitoral para emitir o documento de identificação nacional, sendo permitida a delegação, pelo Tribunal Superior Eleitoral, a outros órgãos.
Aproveitando a parceria exitosa dos Serviços de Registro Civil de Pessoas Naturais com a Secretária da Receita Federal do Brasil para emissão do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) em conjunto com o ato de registro de nascimento da criança, o projeto poderia contemplar expressamente a possibilidade de delegação da emissão do documento de identificação nacional aos cartórios.
Em alguns Estados da federação a parceria tem se estendido aos órgãos de identificação civil, para permitir a expedição do registro de identidade civil pelos cartórios, a exemplo do que ocorre no Estado do Rio Janeiro.
Que sejam incentivadas e multiplicadas as iniciativas pela desburocratização, sem olvidar da necessária segurança e eficiência que devem ser prestadas e garantidas pelos serviços públicos.
Pelo conjunto da obra: estrutura ramificada (presença em todos municípios do país), profissionais técnicos e qualificados, atributo da fé pública, poder autenticante, atribuições relacionadas ao registro dos atos da pessoa civil (nascimento, casamento e óbito), os serviços extrajudiciais oferecem as melhores condições para exercício da função em destaque pelo projeto.
Em consideração final anota-se a importância da promoção de controle finalístico incidente sobre a utilização das informações e dados pessoais constantes do cadastro. O acesso e o uso das informações disponibilizadas para criação da Identidade Civil Nacional deve ater-se às finalidades propostas pela lei, sob pena de violação do direito fundamental à intimidade e à vida privada do cidadão.
Marcelo Guimarães Rodrigues é desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Victor Fróis Rodrigues é advogado e professor universitário. Especialista em Direito Notarial e Registros Públicos pela Anhanguera-Uniderp/SP. Especialista em Direito Público pela PUC/MG. Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos/MG.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 4 de março de 2017, 17h48