Vamos agora em definitivo passar todos a ter o nosso “médico na palma da mão” ou, mais concretamente, no aplicativo do celular?
Por Aldo von Wangenheim
As últimas semanas foram bastante movimentadas no que diz respeito a regulamentação da Telemedicina no Brasil: Dia 27 de Abril, a Câmara aprovou o projeto de lei que autoriza e define um conceito para a prática da Telemedicina.
A Lei nº 13.989/2020, de autoria da deputada Adriana Ventura (Novo) e outros 14 deputados, também conhecida como “Lei da Telemedicina”, foi editada como uma medida emergencial para permitir o exercício de atividades de Telemedicina e Telessaúde durante a pandemia.
A atual versão do PL 1998/2020 agora tramitado na Câmara revogou essa Lei nº 13.989 e introduziu alterações na Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para autorizar e disciplinar a prática da Telessaúde em todo o território nacional. Com isso, a legislação da Telemedicina chegou mais próxima de ganhar caráter definitivo e está indo para o Senado.
Por outro lado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) também não ficou parado e editou a sua resolução Nº 2.314, de 20 de abril de 2022, que representa a 5ª iniciativa do Conselho de regulamentar as atividades de Telemedicina no país. Está iniciada uma nova era na atenção à saúde no Brasil onde vamos dizer adeus às filas na sala de espera do médico ou do posto de saúde?
Regulamentação da Telemedicina no Brasil – muitas resoluções
RESOLUÇÃO CFM Nº 2.314, de 20 de abril de 2022.
RESOLUÇÃO CFM Nº 2.299, de 30 de setembro de 2021.
RESOLUÇÃO CFM nº 2.228, de 26 de fevereiro de 2019.
RESOLUÇÃO CFM nº 2.227, de 13 de dezembro de 2018.
RESOLUÇÃO CFM nº 1.821, de 11 de julho de 2007 (Prontuário Eletrônico).
RESOLUÇÃO CFM nº 1.643, de 26 de agosto de 2002.
A situação obviamente não é tão simples e, para nós avaliarmos o impacto que esta legislação vai trazer sobre o processo de atenção à saúde no Brasil e, consequentemente, tanto sobre o mercado privado de atenção digital à saúde como sobre os serviços públicos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), temos de primeiramente compreender algumas coisas:
Por um lado, a lei é extremamente genérica e apenas define em linhas gerais que Telemedicina é a prática da atividade médica intermediada por tecnologias de comunicação e informação e que a sua execução vai ser permitida no Brasil, deixando a definição de especificidades por conta das Corporações de Ofício responsáveis pela regulação das atividades de atenção à saúde no Brasil, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) os Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), além de corporações específicas como Colégio Brasileiro de Radiologia (CBR), Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), e outros.
Estas entidades têm, desde 2002, com o surgimento da primeira resolução de Telemedicina do CFM, regulamentado e se manifestado acerca de diferentes aspectos da prática médica a distância e do uso de meios eletrônicos para a comunicação e o armazenamento de informações médicas. Para que várias necessidades que hoje nós percebemos como óbvias possam ser atendidas pela Telemedicina será necessário que todas as atividades específicas a elas relacionadas sejam regulamentadas por um ou mais desses órgãos.
Por outro lado, Telemedicina é uma atividade que possui muitas facetas, tecnologias e aplicações diferentes, com potencial para implementação com maior ou menor sucesso também em setores de saúde diferentes. Falamos disso em nossa entrevista “Pandemia aumenta alcance da Telemedicina no Brasil” para a Revista Questão de Ciência em julho de 2020.
Aqui, para nós usarmos exemplos concretos e sair do campo do abstrato, eu vou ilustrar as diferentes facetas que a Telemedicina pode assumir, e as diferentes necessidades que ela pode suprir, com situações bem concretas que nós vivenciamos no contexto do STT – Sistema Integrado de Telemedicina e Telessaúde de Santa Catarina.
Projeto piloto envolvendo o Hospital Universitário da UFSC
O STT iniciou-se em 2002 com um projeto piloto envolvendo o Hospital Universitário da UFSC e três clínicas radiológicas da região da Grande Florianópolis.
Ali nasceu a tecnologia que foi a base para o projeto iniciado com o governo do Estado de Santa Catarina em 2004 e que criou a primeira rede estadual de Telemedicina do Brasil, a Rede Catarinense de Telemedicina, que hoje integra mais de 600 instituições públicas de saúde em 295 municípios de SC.
De lá para cá muita coisa aconteceu e hoje fornecemos tecnologia e serviços de Telemedicina e Telessaúde para vários outros estados brasileiros através do Programa Nacional de Telessaúde do ministério da Saúde (o último foi o Acre, que implantamos na virada do ano, com cobertura integral de dermatologia no SUS).
Com o nosso recente acordo com a EBSERH estamos agora também fornecendo tecnologia e expertise em modelos de processo de trabalho e protocolos com Telemedicina, em parceria com a RNP e com a Universidade Federal da Paraíba, para todos os hospitais universitários federais do Brasil. Agora que eu fiz um pouco de propaganda e apresentei o nosso histórico, vamos falar dessas facetas:
Teleconsulta ou Telemedicina Síncrona
A primeira visão da Telemedicina que aparece no imaginário popular é a da Teleconsulta ou Telemedicina Síncrona: você não precisa ter a minha idade e ter assistido ao desenho animado dos Jetsons na TV quando era criança para sonhar com a consulta médica pelo computador ou pelo celular.
Esse é o sonho de consumo de todo paciente: você está se sentindo mal e você simplesmente marca uma conversa com o seu médico pelo celular!
Olhando-se o texto original do Projeto de Lei, percebe-se claramente que a Teleconsulta também ocupou o imaginário dos seus autores, pois nas justificativas eles escrevem: “Diante de um quadro sintomático, o paciente pode ser atendido virtualmente em sua residência por meio de vídeo ou mesmo áudio, possibilitando avaliação da real necessidade de comparecimento à unidade de saúde…”.
A viabilização da Teleconsulta é provavelmente o efeito mais importante que essa nova legislação teve para a prática diária da Telemedicina, pois esta era uma atividade que antes estava explicitamente proibida pela Resolução CFM nº 1.643, de 2002, que regulamentava várias atividades de Telemedicina mas proibia a realização de consultas à distância.
Teleconsulta é essencial em dois tipos de ação de atenção à saúde. Uma é a triagem espontânea de pacientes, onde o paciente tem a possibilidade de ter uma conversa com um médico ou profissional treinado para saber se o problema dele é algo que pode ser resolvido numa conversa ou se ele necessita de fato comparecer a uma clínica médica ou posto de saúde para um exame mais detalhado. Outra ação é o acompanhamento de pacientes pós-consulta presencial, especialmente no caso de idosos e crianças.
No STT nosso primeiro piloto com a nossa nova tecnologia de Teleconsulta foi realizado com pacientes pediátricos que haviam recebido o primeiro atendimento no ambulatório de pediatria de um hospital e, a partir daí, foram acompanhados a distância através de Teleconsulta, que pôde ser realizada com os pais e com a criança tanto por videoconferência como por chat (https://bit.ly/tele-pediatria).
Para planos de saúde, oferecer Teleconsulta é também muito interessante pois, além de reduzir custos e flexibilizar o trabalho de seus médicos, possui um apelo de marketing bastante grande, justo pelo fato de a teleconsulta ter esse apelo “Jetsons” no imaginário popular.
Agora, no pós-pandemia, estamos vendo aparecerem vários relatos, em especial de operadores privados, de que a teleconsulta tem atingido níveis de resolutividade de até 80% de pacientes que não tiveram necessidade de buscar um atendimento presencial.
Telemedicina assíncrona
Isto é um resultado muito bom. De um ponto de vista de saúde pública, porém, a Teleconsulta não tem um impacto tão grande quanto tem a Telemedicina Assíncrona, que nós já vamos ver.
A Telemedicina assíncrona é, para o Sistema Único de Saúde, muito mais importante do que a Teleconsulta. Assíncrono é tudo aquilo que você não realiza simultaneamente: triagem e encaminhamento de pacientes com base em exames no posto de saúde, laudo remoto de exames médicos no interior, apoio a médicos do posto de saúde por parte de especialistas, laudo remoto de exames de emergência e urgência e outras ações.
A Telemedicina assíncrona, apesar de não ter o mesmo apelo que a Teleconsulta, já vinha sendo regulamentada passo a passo pelo Conselho Federal de Medicina desde 2002. O PL 1998/2020 absolutamente não a cita explicitamente, mas isso não é um problema, pois as definições providas no PL são tão amplas que também cobrem as ações assíncronas.
Quando nós iniciamos as nossas pesquisas de Telemedicina em Santa Catarina em parceria com o governo do estado, em 2004, o nosso principal objetivo foi a criação de uma tecnologia de Telemedicina assíncrona de larga escala para a realização de exames à distância e para “tirar o paciente da estrada”.
Se você mora em um grande centro e é usuário de um plano de saúde privado você ainda não teve o desprazer de conhecer a prática da “ambulancioterapia”.
Para o paciente do Sistema Único de Saúde que mora em uma cidade do Interior a realidade é completamente outra: no início da década de 2000 os postos de saúde e policlínicas das cidades do Interior, por falta de condições de resolver os problemas dos pacientes, em muitos locais do Brasil haviam se transformado em verdadeiros “despachantes de pacientes” que apenas organizavam o encaminhamento desses pacientes para centros maiores, onde eles esperavam meses por uma consulta médica ou um exame. Santa Catarina não era diferente. Relatamos isto em uma série de vídeos, alguns históricos, nesta playlist: https://bit.ly/stt-ebserh
Para modificar isso nós criamos toda uma estratégia de mudança do processo de trabalho e dos protocolos de atenção à saúde que se centrou principalmente na ideia de você interiorizar exames médicos, transformando-os de exames diagnósticos, originalmente realizados em policlínicas e hospitais, para exames de triagem executados diretamente no posto de saúde ou em centros de realização de exames de municípios do Interior.
Ao invés do paciente esperar meses por uma vaga para ser atendido por um especialista numa consulta ambulatorial em um hospital, realizamos o exame por meio de um técnico ou médico de família no próprio posto de saúde e esse exame é avaliado, mais tarde, por um especialista à distância, que então decide se o paciente vai ser encaminhado ou se ele pode ser tratado no posto de saúde, sem necessidade de encaminhamento, mas com a possibilidade de acompanhamento a distância pelo especialista.
Tem vários efeitos: o atendimento do paciente normalmente ocorre em poucos dias a invés de se ter uma espera de meses, o trabalho do especialista é otimizado enormemente pois ele passa só a prover laudos de exames realizados a distância e vai atender presencialmente apenas aqueles pacientes que realmente necessitam da sua atenção pessoal e que serão encaminhados a ele.
Antigamente desperdiçava-se muito tempo de especialistas com o encaminhamento desnecessário de pacientes que não teriam necessidade de ser atendidos por especialistas, mas eram encaminhados porque o médico da atenção básica não sabia o que fazer ou não tinha condições de fazer o que necessitava.
O melhor exemplo de onde isso funcionou de forma fantástica é a dermatologia: em Santa Catarina, que é o estado com a mais alta incidência de câncer de pele do país, até 2012 o paciente do Sistema único de Saúde tinha um tempo médio de espera de seis meses por um exame com o dermatologista, com toda a enxurrada de problemas em cascata que você tinha em decorrência de complicações por atendimento tardio de muitas doenças. Hoje, com cobertura total do estado com Teledermatologia, esta espera se reduziu para poucos dias para um exame de Teledermatologia no posto de saúde, onde o paciente recebe, em até 72 horas depois, um parecer se necessita ser encaminhado ou não e se esse encaminhamento vai ser para um dermatologista ou se o encaminhamento deve ser diretamente para um hospital oncológico, no caso de uma suspeita fundamentada de câncer de pele como melanoma.
Por outro lado, tanto os dermatologistas dos ambulatórios quanto os oncologistas dos hospitais pararam de receber encaminhamentos de pacientes que não necessitam da sua atenção e têm, assim, mais tempo para atender mais rápido os pacientes que realmente necessitam deles (http://dx.doi.org/10.1089/tmj.2018.0197).
Teleconsultoria ou Teleinterconsulta
Outro aspecto da Telemedicina assíncrona é a Teleconsultoria, também conhecida como Tele-interconsulta: aqui o médico especialista provê apoio ao médico da atenção básica, respondendo dúvidas ou acompanhando um caso mais complicado que o médico da atenção básica está tratando no posto de saúde. Isso também ajuda a aumentar a resolutividade do posto de saúde: quando o médico tem dúvida se deve encaminhar ou não, ele realiza uma Teleconsultoria para buscar apoio e, assim, automaticamente, caso o paciente necessite de encaminhamento, já recebe a autorização para este encaminhamento.
Hoje no STT toda a tecnologia para prover esses serviços é hospedada em nuvem e todos os serviços são integrados em um único registro eletrônico de saúde do paciente, provido de toda a segurança esperada. Só em Santa Catarina o STT realiza uma média de mais de 70 mil exames assíncronos por mês.
Porque eu expliquei tudo isso em tantos detalhes? Porque nós precisamos ter isso em mente para responder a próxima pergunta:
Para você, paciente, a nova Legislação vai resolver as suas necessidades?
A proposta de legislação, por ser genérica e flexível, é ao meu entender mais que suficiente. Hoje a telemedicina enfrenta um problema muito mais cultural do que tecnológico ou legal: existe uma grande resistência em muitos setores do meio médico. A maior resistência tem vindo das corporações de ofício da área da Saúde.
O que é uma Corporação de Ofício?
As modernas corporações de ofício como OAB, CONFEA, CREAs, CFM, CRMs, etc, são uma evolução das tradicionais Guilden da Idade Média que regulamentavam e faziam controle de qualidade da atuação de todo tipo de profissional, de carpinteiros e limpadores de chaminé a advogados (e ainda o fazem hoje em países como a Alemanha).
Um órgão regulatório independente do Estado, suportado pelos próprios profissionais que regula, possui a grande vantagem de ser imune à corrupção pelo Estado e proferir independência e credibilidade aos mecanismos de controle de qualidade da atuação das diversas profissões. Por outro lado, por ser autogerido, está exposto ao risco de criar um ambiente potencialmente corporativista e que não necessariamente está propenso a acompanhar o avanço da Sociedade, da Tecnologia ou das políticas de Estado.
Nestes 20 anos em que temos trabalhado com Telemedicina no Brasil, o setor onde encontramos a maior resistência foi o setor médico, em especial os Conselhos, Sociedades e Colégios (com algumas exceções muito felizes como por exemplo a Sociedade Brasileira de Dermatologia que nos apoiou integralmente desde o início de nossas atividades).
Por exemplo, somente em 19 de julho de 2016 o CFM realizou o Fórum de Telemedicina, na forma de uma audiência pública para reiniciar a discussão mais que necessária para revisar a sua resolução de 2002. As discussões ali iniciadas só vieram a produzir frutos mais de dois anos depois na forma de uma nova resolução de Telemedicina, a resolução 2.227, de 13 de dezembro de 2018, a qual foi imediatamente revogada através da resolução nº 2.228, de 26 de fevereiro de 2019, voltando a valer a resolução original, nº 1.643, de 26 de agosto de 2002. Somente agora, após a pandemia, tivemos duas resoluções (2.299 e 2.314) que deixaram o assunto mais claro.
Tele-ultrassonografia obstétrica
Eu vou citar um outro exemplo que também é da nossa realidade: Tele-ultrassonografia obstétrica.
No Brasil nós temos uma situação bizarra: Existe uma legislação, composta por uma série de decretos ministeriais, promulgados entre 1996 e 2013, que concedem à gestante o direito a seis (6!) atendimentos pré-natais pelo SUS e um Manual de Atenção ao Pré-Natal de Baixo Risco, do SUS, que, no seu “roteiro para a solicitação de exames no pré-natal de baixo risco” indica a Ultrassonografia Obstétrica como um exame que deve ser realizado no primeiro trimestre.
No entanto, não há hoje, em muitos lugares, nenhuma forma economicamente viável de se atender a esta legislação: uma fração considerável dos pequenos municípios brasileiros só conseguiria atender esta norma encaminhando todas as gestantes a municípios maiores, muitas vezes distantes centenas de quilômetros, onde há hospitais ou clínicas radiológicas em condições de realizar o exame. Por quê?
Porque, ao contrário de países como Estados Unidos, Inglaterra e Canadá, onde técnicos treinados podem realizar exames ultrassonográficos de rotina (Canadá realiza Tele-ultrassonografia obstétrica em áreas remotas há 15 anos), no Brasil o Colégio Brasileiro de Radiologia permite a realização de exames de ultrassom apenas a médicos especialistas, como obstetras, ultrassonografistas ou radiologistas.
Na prática isso inviabiliza a implantação de Tele-ultrassonografia em Unidades Básicas de Saúde em pequenas cidades ou regiões remotas onde uma possível gravidez de risco necessita de um acompanhamento ultrassonográfico e onde seria importante para todas as gestantes poderem realizar um Tele-ultrassom no primeiro trimestre no próprio posto de saúde. Se pensarmos em termos de Amazônia, para uma possível gestante de risco a ambulancioterapia pode acabar se transformando em “táxi-aéreo-terapia” por falta de uma solução de telemedicina, com enormes custos humanos e para o SUS. Segundo um estudo de 2020 da FIOCRUZ, na Região Norte apenas 68% das gestantes que realizaram acompanhamento da gravidez pelo SUS tiveram acesso a pelo menos um exame de ultrassom.
Por que não desenvolver um curso de ultrassonografia para o Médico de Família ou o Clínico Geral, como existe na Alemanha há muito tempo, ou mesmo para o profissional de enfermagem, para capacitá-lo a realizar exames simples, que possam ser realizados no Posto de Saúde, posteriormente laudados à distância por um especialista e usados como exames de triagem para identificar pacientes que realmente necessitam de cuidado especial e necessitam ser encaminhados? Um curso desses poderia inclusive ser ministrado à distância utilizando a enorme infraestrutura de formação continuada que hoje o Telessaúde Brasil possui. Não parece óbvio em um país continental como o Brasil? Equipamentos de ultrassom são baratos, de baixa manutenção e sem insumos e, para estes exames simples, inclusive equipamentos antigos que estão parados sem uso em hospitais podem ser revitalizados e utilizados.
Em tempo: Pré-Natal é mais que Ultrassom
Nós estamos aqui argumentando contra a resistência à Tele-Ultrassonografia, que é sem dúvida um caso emblemático e que necessita ser discutido de forma mais ampla. Isso não significa que apenas colocar um Ultrassom no Posto de Saúde, com alguém dando laudo à distância, vai resolver as deficiências que temos na atenção pré-natal no Brasil.
O Manual de Atenção ao Pré-Natal de Baixo Risco do SUS indica uma série de outras ações que são muito mais simples de se fazer e que têm um impacto muito maior sobre a saúde tanto da gestante como do bebê.
Um caso simples é a realização dos exames de sífilis pré-natais. Vários estudos mostram que existe uma grande deficiência neste que é um exame simples de fazer. Um estudo com dados de 2018 revelou que, em Santa Catarina, 27,3% das gestantes portadoras de sífilis tiveram a doença diagnosticada apenas no momento da internação para o parto, impossibilitando o tratamento da gestante e pondo em risco a vida do bebê.
Aqui a Telemedicina já pode ajudar com medidas simples de acompanhamento e orientação do médico de família, através das Teleconsultorias, da mesma forma que hoje o STT já faz na Teledermatologia. Neste momento estamos em conversas com o Ministério da Saúde para iniciar um piloto no estado do Amazonas justamente com esse objetivo. Outro fato é que durante a pandemia de COVID-19 a mortalidade materna aumentou 75% no Brasil. Mais uma razão para melhorarmos a atenção à gestante nos postos de saúde do Interior.
Tele-ultrassonografia é um exemplo de um campo da Telemedicina que em 20 anos de trabalho não avançou, mas tem um potencial de trazer benefícios enormes ao Brasil e que só vai avançar com um diálogo maior e constante com os Conselhos e com as Sociedades, para que entendam que, para que possamos dar atenção à saúde que o Brasileiro merece, temos de descer da torre de marfim, pensar de forma mais pragmática e voltada a soluções e olhar o que foi e está sendo feito no Exterior.
Da mesma forma, também existe ainda resistência de outros setores do meio médico: por exemplo, quando participamos da Comissão Externa do Coronavírus da Câmara dos Deputados e apresentamos, entre outras coisas, a Telepediatria para exemplificar como trabalhar de forma consistente com Teleconsulta, fomos duramente criticados por um parlamentar médico (https://bit.ly/cexcorvi).
Não confunda Tele consulta com Teleconsultoria!
São termos que soam parecidosparecido e, no meio desse mar de definições não tão padronizadas que encontramos na Telemedicina, é fácil confundir. Vamos então à definição:
Teleconsulta: É consulta do paciente com o médico à distância e em tempo real, através do telefone, do chat, do aplicativo de celular ou da videochamada no computador.Teleconsultoria: É uma consulta entre médicos, onde geralmente um médico especialista presta apoio a um médico generalista, tipicamente um médico de família em um posto de saúde. Pode também ser entre especialistas quando, por exemplo, um radiologista solicita apoio a outro no diagnóstico de uma ressonância magnética de ligamentos cruzados. É também chamada de tele-interconsulta. No STT preconizamos que seja sempre realizada de forma assíncrona a fim de otimizar o tempo do especialista e permitir que este assista mais médicos generalistas.
E a segurança, onde fica?
A questão da segurança na área da Saúde Digital repousa sobre dois fatores: por um lado tecnologia e, por outro lado, normas e modelos de processo humanos.
Os requisitos tecnológicos mínimos para Telemedicina são um assunto dominado e regulamentado, inclusive pelo CFM, há bastante tempo. Discutimos isso em muitos detalhes em dois artigos na Radiologia Brasileira: https://doi.org/10.1590/S0100-39842007000600011 e http://dx.doi.org/10.1590/S0100-39842011000600001.
Protocolação digital
O que fica de fora destas normas é a questão da garantia da temporalidade, comprovação de que um “ato médico digital” ocorreu em um determinado momento específico do tempo, que pode ser provida por um carimbo digital de tempo, mas cujo uso na Saúde ainda não está regulamentado no Brasil, apenas a comunicação segura e a assinatura digital estão.
Na plataforma tecnológica disponibilizada pelo STT, porém, há possibilidade de se utilizar a protocolação digital de tempo tanto para exames médicos e Teleconsultorias individuais, quanto para pares exame/laudo. Isso pode parecer difícil de implantar, mas às vezes uma empresa ou instituição possui uma protocoladora digital que tem tempo ocioso e pode ser utilizada para esse fim: no início das operações da telemedicina em Santa Catarina utilizávamos, de forma compartilhada, a protocoladora digital de notas fiscais eletrônicas da Secretaria da Fazenda.
As questões de segurança relacionadas a fatores humanos, que dizem respeito a normas e modelos de processo humanos no lidar com os dados de saúde e no projetar formas de manuseio desses dados por ferramentas de software, durante muito tempo existiram em uma zona cinzenta das boas práticas nem sempre documentadas de maneira formal.
Com a LGPD isto mudou radicalmente: agora existem diretivas muito claras de qual informação é acessível a quem e o que deve ser protegido de quem. Eu entendo que o Brasil está muito bem servido tanto tecnologicamente quanto em termos de modelos de processo para poder prover a segurança necessária aos dados de saúde de seus cidadãos.
Para o brasileiro que conhece o Brasil apenas de dentro nem sempre fica claro como temos um excelente nível de desenvolvimento do ponto de vista da informatização. Durante a crise do coronavírus isso ficou muito claro.
Tomemos como exemplo a Alemanha, que antes citamos como um exemplo positivo por ser um país onde qualquer médico pode aprender a fazer o ultrassom e usá-lo em sua prática clínica diária: acompanhando o noticiário alemão pudemos ver que o Ministério da Saúde lá teve muita dificuldade em coletar dados de morbidade, mortalidade e taxas de vacinação porque muitos municípios do interior enviavam seus dados por FAX (!!!) ao Instituto Robert Koch – RKI, responsável pela elaboração das estatísticas de COVID. Os dados tinham que então ser trabalhosamente redigitados todo dia para que estatísticas pudessem ser elaboradas.
ConecteSUS
Lá o Congresso está há meses discutindo se vão ou não fazer um registro nacional de vacinação e uma carteira de vacinação digital unificada. Enquanto isso, no Brasil, nós simplesmente usamos o conceito já existente da Rede Nacional de Dados em Saúde – RNDS, que estava semi-iniciada, para transformar o ConecteSUS em uma carteira nacional de vacinação digital em poucos meses. Houve alguns percalços e vazamentos de dados no caminho, mas hoje temos um sistema, aderente aos mais modernos padrões de interoperabilidade em saúde como o HL7 FHIR, de fazer inveja à maioria dos países desenvolvidos (veja caixa adiante).
Da mesma forma, a segurança da tecnologia de videoconferência para área da saúde, Vídeo for Health – V4H (https://v4h.cloud/), desenvolvida pelo LaVid da UFPB e utilizada na plataforma de Teleconsulta do STT, vai além da simples assinatura digital ou protocolo digital e permite utilizar tecnologia de blockchain para prover segurança e auditabilidade a toda uma sequência de atendimentos médicos em vídeo. Mais um exemplo de onde a tecnologia desenvolvida e utilizada no Brasil está bastante à frente das normas de segurança atualmente vigentes.
HL7® FHIR®
HL7® FHIR® (https://www.hl7.org/fhir/) é um padrão de interoperabilidade desenvolvido pela Health Level Seven International (HL7®), uma organização sem fins lucrativos dedicada ao desenvolvimento e à oferta de padrões e frameworks para a troca, integração, compartilhamento e recuperação de dados eletrônicos em saúde como suporte à prática clínica e administrativa.
O padrão FHIR®, uma evolução das versões anteriores desenvolvidas pela HL7® (v2 e v3), define um modelo de representação para os dados a serem trafegados na forma de recursos (resources), além de interfaces RESTful (Representational State Transfer) para a comunicação – envio e recebimento – de instâncias desses recursos entre pontos interessados em interoperar dados de seus ecossistemas em saúde.
No caso do Sistema Integrado de Telemedicina e Telessaúde (STT), o padrão HL7® FHIR® é utilizado como padrão de facto visando não só a interoperabilidade de dados com outros sistemas de informação em saúde, mas também como padrão interno do sistema para persistência (armazenamento) de dados utilizado na composição do histórico de eventos registrados pelo sistema relacionados ao paciente. De forma incremental, o STT tem sido adaptado para uso do padrão FHIR® nos serviços ofertados (regulação, telediagnóstico, teleconsulta, teleconsultoria, radiologia), introduzido as customizações necessárias à manutenção das regras de negócio que definem o funcionamento do sistema.
Em suma, o nosso desafio, na Telemedicina, não é, de forma nenhuma, tecnológico. As barreiras a serem vencidas também não estão entre os pacientes que, pelo que temos conseguido perceber nestes 20 anos de atuação na área, estão ávidos por poder usufruir dos benefícios da Telemedicina, mas sim entre os profissionais da área da saúde, em especial nas sociedades, conselhos e colégios de especialidades médicas.
Aqui se faz necessário um diálogo maior, mas também uma disposição maior a sair de modelos e formas de trabalho engessadas ou idealizadas, que não correspondem àquilo que nós precisamos para resolver necessidades de saúde no Brasil.
Eu penso que essa nova legislação é uma oportunidade para reacender este diálogo e abrí-lo para a Sociedade, para que possamos avançar e olhar para os problemas do Brasil e pensar em como vamos, na prática, resolvê-los.
Agradecimentos
Muita coisa que está aqui neste artigo acabou escrita do jeito que está graças a frutíferas conversas com muitas pessoas. Em especial quero agradecer à Profª Roxana Knobel, do Depto. de Ginecologia e Obstetrícia da UFSC, aos Profes. Maria Cristina Calvo e Sérgio Torres de Freitas do Depto. de Saúde Pública da UFSC e ao Dr. Alexandre Savaris, do STT/UFSC, que contribuíram com definições, ideias, opiniões, puxões de orelha e inspiração.
Referências
1- ATENÇÃO AO PRÉ-NATAL DE BAIXO RISCO. Série A. Normas e Manuais Técnicos – Cadernos de Atenção Básica, n° 32. Brasília, 2012, https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_atencao_basica_32_prenatal.pdf
2- Whitworth M, Bricker L, Mullan C. Ultrasound for fetal assessment in early pregnancy. Cochrane Database of Systematic Reviews 2015, Issue 7. Art. No.: CD007058. DOI: 10.1002/14651858.CD007058.pub3, https://www.cochranelibrary.com/cdsr/doi/10.1002/14651858.CD007058.pub3/full
3- Leal, M. do C., Esteves-Pereira, A. P., Viellas, E. F., Domingues, R. M. S. M., & Gama, S. G. N. da. (2020). Prenatal care in the Brazilian public health services. Revista De Saúde Pública, 54, 8. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054001458
4- Carvalho Pacagnella et.al. Mortalidade materna no Brasil: propostas e estratégias para sua redução. Editorial. Rev. Bras. Ginecol. Obstet. 40 (09) Sept 2018 https://doi.org/10.1055/s-0038-1672181
5- BomfimV. V. B. da S., BezerraM. E. L. de M., SouzaB. T. T., Alencar F. A. G., Barreto Y. M. da R., Oliveira A. R. do N., Silva M. B. de C., Eberhardt E. da S., Guimarães G. M., & Oliveira E. G. de. (2021). A importância do pré-natal no diagnóstico e tratamento da sífilis congênita. Revista Eletrônica Acervo Saúde, 13(7), e7969. https://doi.org/10.25248/reas.e7969.2021
6- Roehrs MP, Silveira SK, Gonçalves HH, Sguario RM. Sífilis materna no Sul do Brasil: epidemiologia e estratégias para melhorar. Femina. 2020;48(12):753-9. https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/12/1141186/femina-2020-4812-753-759.pdf
7- Schipanski, Camila Veiga, Manenti, Sandra Aparecida. Perfil epidemiológico e transmissão vertical da sífilis em gestantes no estado de Santa Catarina. Trabalho de Conclusão de Curso, UNESC,, Julho, 2018. http://repositorio.unesc.net/handle/1/6345
8- Saraceni V, Pereira GFM, Silveira MF, Araujo MAL, Miranda AE. Vigilância epidemiológica da transmissão vertical da sífilis: dados de seis unidades federativas no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2017;41:e44. https://iris.paho.org/handle/10665.2/33998
9- Aliança Machado Nunes, Marques e Gutierrez Sociedade de Advogados e Advocacia. Telemedicina em tempos de Coronavírus. https://www.machadonunes.com.br/pt/telemedicina-em-tempos-de-coronavirus/
10- Carla Betina Andreucci, Roxana Knobel. Social determinants of COVID-19-related maternal deaths in Brazil. Lancet Regional Health – The Americas. October, 2021. https://doi.org/10.1016/j.lana.2021.100104
Sobre Aldo von Wangenheim
É Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina e possui graduação em Ciências da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (1989) e Doutorado Acadêmico (Dr. rer.nat.) em Ciências da Computação pela Universidade de Kaiserslautern (1996). Atua na Universidade Federal de Santa Catarina, onde é professor do Programa de Pós-graduação em Ciência da Computação e dos cursos de graduação em Ciências da Computação e Sistemas de Informaçãoa. Tem experiência nas áreas de Produção de Conteúdo para TV Digital Interativa, Informática em Saúde, Processamento e Análise de Imagens e Engenharia Biomédica, com ênfase em Telemedicina, Telerradiologia, Sistemas de Auxílio ao Diagnóstico por Imagem e Processamento de Imagens Médicas, com ênfase nos temas: analise inteligente de imagens e deep learning, DICOM, CBIR, informática médica, visão computacional e PACS. Coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Convergência Digital – INCoD. É também Coordenador Técnico da Rede Catarinense de Telemedicina (RCTM) e membro fundador e ex-coordenador da Comissão Informática em Saúde da ABNT – ABNT/CEET 00:001.78. Atualmente também é membro da comissão ISO/TC 215 – Health Informatics. Foi coordenador da RFP6 – Conteúdo – do SBTVD – Sistema Brasileiro de TV Digital/Ministério das Comunicações. Foi Coordenador do Núcleo de Telessaúde de Santa Catarina no âmbito do Programa Telessaúde Brasil do Ministério da Saúde e da OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde e Coordenador do Núcleo Santa Catarina da RUTE – Rede Universitária de Telemedicina. Em 2018 recebeu a Medalha Exército Brasileiro por suas contribuições à Telemedicina do Exército. A Medalha foi instituída pela Portaria nº 219 de 14 de Março de 2016 e destina-se a distinguir cidadãos e instituições civis que tenham praticado ação destacada ou serviço relevante em prol do interesse e do bom nome do Exército Brasileiro.
Anap destaca 7 fatores a serem observados na regulamentação sobre telemedicina no Brasil
Natália Cabrini da Wolters Kluwer fala sobre as principais tendências da Telemedicina no Brasil