DESAFIO DE LEVAR O USO DO BLOCKCHAIN PARA O CONSUMIDOR FINAL AINDA TIRA O SONO DOS ESPECIALISTAS; MAS PROJETOS BASEADOS NESSA TECNOLOGIA PODEM FAZER PARTE DO COTIDIANO DA POPULAÇÃO EM 2020
No segundo semestre de 2017, um lote de lombo suíno congelado e fatiado da marca Sadia teve todo o seu trânsito pelo mercado rastreado por meio de blockchain, desde a data do abate dos animais até a chegada da carne às mãos do consumidor no supermercado. O projeto, batizado Food Tracking, foi desenvolvido na Garagem 1157 – espaço criado pela IBM para acelerar inovações e aplicações na nuvem – e usou a plataforma de blockchain da IBM, baseada no Linux Foundation´s Hyperledger Fabric. Para virar realidade, contou com a parceria da rede Carrefour Brasil e da BRF, uma das maiores empresas de alimentos do mundo.
Foram oito semanas de trabalho, iniciadas na fábrica de Santa Catarina, onde foram coletadas informações como data do abate, corte e nome das pessoas responsáveis pelo manuseio do produto. Na sequência, a equipe mapeou o transporte e o armazenamento nos centros de distribuição, até a chegada à loja do hipermercado na capital paulista. Na loja do Carrefour dos Jardins, a solução tecnológica foi experimentada por consumidores que, a partir da leitura de um QRCode afixado na embalagem, podiam conhecer as informações detalhadas das etapas de produção e distribuição. Foi a primeira vez em que uma rede de hipermercados no Brasil adotou a tecnologia do blockchain para rastrear produtos de ponta a ponta. Segundo os responsáveis pelo projeto, a empresa ganha pela agilidade do processo; e o consumidor, por poder acompanhar o nível de qualidade do que irá consumir.
Relatório divulgado pelo Fórum Econômico Mundial prevê que em 2025, 10% do PIB serão armazenados em tecnologias relacionadas com blockchain. O instituto de pesquisas Gartner, por sua vez, assinala que o uso da tecnologia deverá gerar US$ 3 trilhões em valor agregado até 2030. Os números enchem os olhos, mas a adoção da tecnologia está mais lenta do que previam os especialistas.
“Em 2016, acreditávamos que, em 2018, haveria muito mais projetos em produção, muito mais uso doblockchain do que estamos assistindo”, afirma Paschoal Baptista, sócio da área da indústria de serviços financeiros da Deloitte. “Esse tempo foi transferido para 2020, quando efetivamente teremos passado da exploração para a prática; as pessoas comuns usufruirão da tecnologia, sem saber que estão usando.”
Segundo Marie Wieck, gerente geral de blockchain da IBM e um dos destaques do CIAB FEBRABAN 2018, a tecnologia traz a possibilidade de transformar a comunicação e de otimizar as transações mais complexas. “O seu potencial de transformação no B2B (do inglês business to business, ou negociação entre empresas) é tão grande quanto foi o da internet na forma como nos comunicamos”, afirma. “A diferença é que, com o blockchain, não conectamos um ponto a outro, mas muitos pontos, e com o elemento-chave da conexão segura de dados.” Entre as indústrias com maior potencial de exploração da tecnologia, a executiva destaca as de logística, imobiliária, seguros e o mercado de capitais.
“O POTENCIAL DE TRANSFORMAÇÃO DO BLOCKCHAIN NA NEGOCIAÇÃO ENTRE EMPRESAS É TÃO GRANDE QUANTO FOI O DA INTERNET NA FORMA COMO NOS COMUNICAMOS”
De forma simplificada, a cadeia de blocos, ou blockchain em inglês, pode ser definida como um grande banco de dados, público, remoto, praticamente inviolável, no qual podem ser registrados arquivos digitais de todo tipo. Cada item armazenado é datado e dá origem a uma espécie de assinatura, formada por uma sequência de letras e números. Os dados das transações realizadas são replicados em diversos computadores. Formam o peer to peer, sistema de envio de dados ponto a ponto, sem uso de um servidor central. A tecnologia funciona de forma descentralizada, o que impossibilita a ação de pessoas dispostas a invadir os sistemas em benefício próprio ou do grupo. Tudo suportado por uma nuvem computacional.
Na visão de Paschoal Baptista, quanto mais rápido avançar a adoção da internet das coisas no cotidiano das pessoas, mais será necessário associar a assinatura digital para cada informação com a ajuda do blockchain. A opinião é compartilhada por Airtom Nascimento, vice-presidente da Stefanini, multinacional brasileira de TI. “O blockchain veio para solucionar problemas, para dar agilidade, transparência e confiabilidade às transações”, diz. “Em menos de cinco anos fará parte do dia-a-dia das pessoas e das empresas.”
Paschoal Baptista, da Deloitte, acredita que em 2020 teremos passado da exploração do blockchain para a prática:
“AS PESSOAS COMUNS USUFRUIRÃO DA TECNOLOGIA, SEM SABER QUE ESTÃO USANDO”
Caminho sem volta
Richard Flávio da Silva, superintendente-executivo do Santander, observa que no Brasil, assim como na Europa e nos Estados Unidos, já se ultrapassou o ponto, na curva de aprendizado, em que se buscava entender o blockchain como uma hipótese ou uma ideia. “Há muitos casos práticos, muita coisa sendo realizada principalmente nas áreas de trading finance e em vários elos da cadeia logística, da produção à entrega do produto.”
Até mesmo a questão da confidencialidade das informações já está sendo bem trabalhada, a ponto do HSBC anunciar a realização da primeira operação de comércio internacional usando apenas blockchain em maio deste ano.” Trata-se da comercialização de um carregamento de soja da Argentina para a Malásia, feita para a Cargil e realizada em parceria com o banco holandês Dutch ING. A plataforma utilizada para fechar o negócio, batizada de Corda Blockchain, foi desenvolvida pelo consórcio R3, do qual o HSBC e o banco ING são integrantes. Segundo Richard, daqui em diante será tudo uma questão de ajustes, mas se trata de um caminho sem volta.
O Santander anunciou em abril deste ano, o serviço On Pay FX, que adota o blockchain para fazer transferências internacionais entre pessoas físicas, com acesso pelo app do banco para smartphones. Segundo Ana Botín, presidente mundial do Grupo Santander, o serviço está disponível em apenas alguns países, entre eles o Brasil. “Clientes do Reino Unido podem usar o One Pay para transferir moeda pela Europa e para os Estados Unidos; na Espanha, clientes podem transferir para o Reino Unido e os EUA, enquanto os consumidores do Brasil e da Polônia podem transferir para o Reino Unido”, afirma. O banco afirma que acrescentará mais moedas e destinos nos próximos meses.
O serviço está disponível inicialmente para clientes Select, com um limite de transação de até US$ 3.000. A tecnologia usada é o xCurrent, da startup Riplle, e sua aplicação permite baixar o tempo das transferências, de dois dias para até duas horas. Até o fim do ano, prevê o banco, os brasileiros poderão enviar euros por esse sistema para diversos países da União Europeia, além da Espanha.
Muito além do setor financeiro
O uso do blockchain também tende a revolucionar a armazenagem de dados digitais em vários setores, entre eles, o agrícola. A implementação de sensores em cultivos poderá auxiliar no fornecimento de dados sobre as condições e tipos de solo, incidência de pragas ou doenças, clima e quantidade de fertilizantes e de água necessários para cada produto.
De olho nesse universo, entrou em operação, em 2016, a Bart.Digital, uma das primeiras startups brasileiras a usar a tecnologia com foco no agronegócio. A empresa desenvolveu um sistema que utiliza blockchain para automatizar o sistema de Barter (escambo, em inglês), como é chamado, no agronegócio, o modelo de troca de insumos por produtos agrícolas entre produtores, distribuidores, cooperativas e o varejo. A cadeia de distribuição e comércio aceita a produção futura dos agricultores e pecuaristas como “moeda” de aquisição de seus artigos e serviços. Isso gera uma espécie de mercado paralelo, em que as negociações são feitas por telefone e acertadas por e-mail.
“Usamos a tecnologia blockchain para trazer uma camada de segurança na negociação entre os players da cadeia agrícola, tornando as modalidades de crédito mais eficientes, ágeis e transparentes para o mercado”, diz Renato Girotto, CEO da Bart.Digital.
Tema foi destaque no CIAB FEBRABAN
Palestras com a temática do blockchain foram um dos destaques do CIAB FEBRABAN 2018. Um dos principais pontos do congresso foi a apresentação do protótipo desenvolvido pelo grupo Blockchain FEBRABAN, criado na Federação Brasileira de Bancos em 2016 para estudar e elaborar projetos comuns com o uso da tecnologia entre as instituições financeiras participantes. Além de bancos, também participam do GT Blockchain FEBRABAN o Banco Central, B3, CIP, Anbima e BNDES.
Durante o congresso de tecnologia, o grupo apresentou um protótipo do que seria um sistema que aplica o blockchain para compartilhar e qualificar informações de segurança sobre dispositivos móveis que venham a ser usados pelos clientes, na sua relação com o banco.
De acordo com Adilson Fernandes da Conceição, coordenador do GT Blockchain da FEBRABAN, no início do processo, são verificados registros disponíveis para saber se o dispositivo do cliente que acessa a rede bancária já teve algum problema de segurança. A partir dessas informações, os bancos poderão enriquecer seus sistemas antifraude para determinar se um dispositivo específico não é confiável por ser, por exemplo, um aparelho perdido, furtado ou roubado.
Tudo começa quando o cliente usa o aplicativo da instituição, inserindo suas informações básicas, como dados pessoais. Ao confirmar o envio dos dados, o aplicativo da instituição financeira coleta informações de hardware e software do dispositivo móvel, e envia estas informações para uma camada de API, que faz as validações, gerando um token (espécie de código identificador), que representa o dispositivo. A camada de API agrupa o CPF do cliente ao token gerado e envia à plataforma de blockchain.
Cada instituição participante da rede de blockchain, recebe a mesma informação instantaneamente e, a partir deste momento, pode consultar os dados, qualificando um dispositivo móvel como confiável ou não, de acordo com suas políticas. O protótipo idealizado pelo GT Blockchain terá de ser validado pelos bancos e refinado para evoluir para um projeto-piloto, onde poderá ser testado de forma controlada.
Embora ainda enxerguem o blockchain como uma tecnologia desafiadora, os bancos nacionais começaram a dar os primeiros passos em direção ao seu uso no cotidiano. “O blockchain não irá resolver todas as equações, mas pode ser a melhor solução para determinados problemas”, afirma George Marcel, responsável por blockchain no Bradesco. “Estamos estudando a fundo a tecnologia e já temos exemplos de provas-conceito realizadas com parceiros do mercado.” O principal teste, segundo o executivo, foi o compartilhamento de cadastro com outras instituições.
Segundo Marcel, sem o blockchain, seria necessário constituir uma empresa só para realizar o cadastramento e manter a posse e o controle de todos os cadastros ali feitos. “Com o blockchain, partindo da premissa que os dados pertencem ao cliente, é ele quem autoriza com quem deseja compartilhar as informações, com um propósito definido, como abrir uma conta, pegar um crédito”, diz Marcel. “O blockchain se mostrou viável para esse tipo de compartilhamento.”
O Itaú, por sua vez, criou um centro de excelência para monitoramento do impacto da tecnologia no dia-a-dia do banco. De lá, saiu a proposta de usar o blockchain para guardar as chamadas margens de garantia de derivados negociados em balcão, que são contratadas por investidores. Até então, as fórmulas de negociação eram registradas pelo banco por meio de troca de e-mails. Com a implantação do blockchain, baseado na tecnologia R3 Corda, a “fórmula” foi armazenada de maneira criptografada e confiável, segundo Igor Freitas, superintendente de Arquitetura Corporativa do Itaú Unibanco.
Na visão do executivo, são grandes os desafios para a adoção do blockchain nas instituições financeiras. “Os obstáculos vão desde o tamanho do volume de dados exigidos para os bancos, o número de transações confirmadas por segundo e a criação de um processo de identificação seguro até a legislação e a própria governança”, declara.
O BNDES decidiu bancar o desafio e, em parceria com o banco alemão KFW, pôs em teste o aplicativo TruBudget, que registra os gastos públicos de forma que fiquem visíveis para todos, mostrando como os recursos do banco estão sendo usados para financiar os projetos escolhidos. Os exemplos começam a se multiplicar. (Kátia Simões e Adriana Mompean)
Startups investem na tecnologia
Embora ainda bastante desconhecida pela maioria das pessoas, a tecnologia blockchain já está entre as “top 10” nas áreas de segurança corporativa, armazenamento de dados e compartilhamento de arquivos. Mas, enquanto os gigantes do mercado se movem lentamente, as startups põem a tecnologia na rua com rapidez, acertando deficiências e lacunas com o bloco na rua.
É o caso da produtora de filmes Bossa Nova, que conta com a plataforma de vídeo Paratii. Trata-se de uma nova proposta desenhada com a tecnologia de blockchain para se produzir, distribuir, vender e consumir vídeo na rede. Construída sobre protocolos abertos, foi projetada para recompensar todos os usuários que contribuíram com o sistema em nível social, econômico ou técnico.
O conteúdo roda na máquina de cada pessoa interessada, dispensando os custos de um data center centralizado. “É uma forma de valorizar o produtor independente, democratizar o acesso e expandir os limites dos modelos de negócios atrelados a conteúdos”, diz Felipe Pereira, executivo da Bossa Nova.
O setor de educação pode ser um grande beneficiado, pelo menos no que depender da Meu Diploma Digital. A startup transforma o conteúdo de qualquer diploma em uma representação digital única e a publica em blockchain, para que tenha marcação no tempo.
“Os detentores dos diplomas poderão ter a segurança de que sempre conseguirão provar a autenticidade do documento para qualquer pessoa ou instituição”, diz o executivo Guilherme Carvalho. “Quando as universidades emitirem diplomas em blockchain a tendência é que a falsificação dos certificados universitários, muito grande no país, chegue próxima de zero.”
Flavio Siviero, da Uniproof, por sua vez, afirma que no futuro o uso da tecnologia blockchain pode transformar os cartórios convencionais em espaços pouco frequentados. “Não será o fim dos cartórios, porque a legislação brasileira não permite, mas eles não terão mais razão para existir.”
A startup criou uma plataforma para permitir o registro de documentos eletrônicos em cartórios de títulos e documentos amparada pela confiança da tecnologia de blockchain. O serviço é oferecido aos usuários, que podem registrar documentos eletrônicos com fé pública, com guarda e conservação no cartório e na plataforma, de qualquer documento em substituição ao original, físico ou eletrônico, sem efeitos contra terceiros (Kátia Simões).
Fonte: Revista Febraban edição 76
[button link=”https://cryptoid.com.br/category/blockchain/” icon=”fa-folder-open” side=”left” target=”” color=”ababa4″ textcolor=”ffffff”]Leia outros artigos sobre Blockchain[/button]
[button link=”https://cryptoid.com.br/category/financas-e-tecnologia/” icon=”fa-certificate” side=”left” target=”” color=”ababa4″ textcolor=”ffffff”]Mercado Financeiro[/button]
Especialista internacional em cibersegurança vem ao Rio para falar sobre Blockchain