Pergunta-se: afinal, para a transmissão ou oneração de bens imóveis será obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada ou será admitida a avançada?
Por Sérgio Jacomino
A Corregedoria Nacional de Justiça acha-se debruçada sobre o desafio de regulamentar a lei 14.382/2022. Ainda recentemente, o Sr. Corregedor Nacional de Justiça, Ministro LUÍS FELIPE SALOMÃO, baixou o Provimento CN-CNJ 139/2023, de 1º de fevereiro, que instituiu as regras basais do SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos1.
Entre os assuntos que certamente entrarão no radar do órgão, acha-se a utilização das assinaturas eletrônicas no processo registral imobiliário. Tema de capital importância para os cartórios brasileiros, as assinaturas eletrônicas são instrumentos e ferramentas que vão aptificar os agentes a interagir na infovia de interoperabilidade do SERP e dos Operadores Nacionais das várias especialidades.
Lembremo-nos de que o tema não interessa tão somente na perspectiva do funcionamento do SERP, mas abrange, naturalmente, a gestão documental a cargo dos próprios cartórios. Documentos, livros, registros, inscrições etc., acolhidos, produzidos e mantidos na própria serventia, devem submeter-se a rígida codificação e enquadrarem-se em tabelas de temporalidade2.
MP 1.162/2023 – a reforma da reforma
Mal terminava de alinhavar estas notas ligeiras, tendo depositado o texto na redação do Migalhas Notariais e Registrais, eis que nos chega a notícia do advento da MP 1.162, de 14/2/2023.
Aparentemente, o Executivo busca corrigir alguns problemas e defeitos revelados por outros juristas – e por mim mesmo, em artigos anteriores3 – relativamente à reforma da LRP. Estas mudanças sucessivas ocorrem basicamente em virtude de enxertos artificiais de disposições alheias à nossa tradição registral. Como disse alhures, são como flores de plástico postas sobre um jardim tropical… Peças recolhidas de experiências alienígenas e que, de certa maneira, instabilizam o sistema de Registro Imobiliário e se chocam com a ratio do Direito Civil pátrio.
Antes de prosseguir com as considerações originais, vamos abrir um pequeno parêntese para nos determos ligeiramente nas novidades consubstanciada no inc. IV, inserido no art. 6º da lei 14.382/2022, art. 17-A na lei 14.063/2020 e a alteração do inc. II do art. 221 da LRP, todos embalados pela dita medida provisória. São elas, in verbis:
Art. 6º Os oficiais dos registros públicos, quando cabível, receberão dos interessados, por meio do Serp, os extratos eletrônicos para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos, nos termos do inciso VIII do caput do art. 7º desta lei.
§ 1º Na hipótese de que trata o caput deste artigo: […]
IV – os extratos eletrônicos relativos a bens imóveis produzidos pelas instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública poderão ser apresentados ao registro eletrônico de imóveis e as referidas instituições financeiras arquivarão o instrumento contratual em pasta própria.
Art. 17-A. As instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública e os partícipes dos contratos correspondentes poderão fazer uso das assinaturas eletrônicas nas modalidades avançada e qualificada de que trata esta Lei.
…
Art. 221 – Somente são admitidos registro: […]
II – escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes, dispensados as testemunhas e o reconhecimento de firmas, quando se tratar de atos praticados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário, autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública; (Redação dada pela Medida Provisória 1.162, de 2023)
À parte a redação rebarbativa do inciso IV do art. 6º, acima transcrito, vê-se que a pequena reforma da reforma previu uma faculdade que se concede às instituições financeiras permitindo que elas utilizem o sistema de meros extratos na consumação do registro. As novas disposições não alteraram substancialmente a situação anterior – exceto que a via notarial foi parcialmente obliterada, substituindo-se a “pasta própria” do tabelionato pela congênere das ditas instituições financeiras.
A questão central, já enfrentada em artigo anterior4, a rigor remanesce como pedra de tropeço (ou de opróbrio) da reforma. Examinando atentamente o texto da lei, haveremos de conceder que ou bem o título inscritível será o extrato, subvertendo-se completamente o sistema registral, ou ele sempre reclama a contraparte (o próprio “instrumento contratual”, como grafado na lei).
Vejamos em detalhe. Reza o caput do art. 6º que os oficiais, quando cabível, receberão extratos eletrônicos “para registro ou averbação de fatos, de atos e de negócios jurídicos”. Nota bene: inscrição de fatos, atos e negócios jurídicos – claras hipóteses de títulos materiais cujo rol se acha nos incisos I e II do art. 167 da LRP, instrumentalizados pelos títulos indicados no art. 221 da LRP. Seguindo o sinuoso percurso da norma, lemos no inciso I do § 1º do art. 6º que o Oficial “qualificará o título pelos elementos, pelas cláusulas e pelas condições constantes do extrato eletrônico”. Em seguida lê-se, no § 2º do mesmo artigo, que nos casos de extratos, proceder-se-á à “subsunção do objeto e das partes aos dados constantes do título apresentado”, a sugerir que o título deva ser apresentado. Por fim, o Oficial qualificará o título em seus aspectos formais e materiais (não o extrato, que contém apenas certos dados estruturados veiculados por meios eletrônicos e processados no hub pseudo registral)”5.
Não queiramos ser mais realistas do que o rei. Parece certo que o “extrato” tenderá a absorver o título, na exata medida em que as entidades registradoras progressivamente vão assimilando o próprio Registro de Imóveis. Está em causa uma profunda mudança de paradigmas do sistema registral pátrio. Advirta-se, pois, de que já não estaremos diante de um título em sentido próprio, mas de outra coisa, bem diferente, longe mesmo, até, de um conjecturável negócio jurídico abstrato, que atrairia a qualificação registral sobre aspectos relativos à existência, validade e eficácia de um negócio jurídico que não é um negócio jurídico, de um instrumento que não é instrumento, de um título que não é um título6.
Nasceu entre nós, com o advento da MP 1.085/2021, o registro por mera indicação, artefato algoritimizável, que não reclama maiores zelos e responsabilidades do que a vigilância da infovia e de seus aparatos tecnológicos.
Por outro lado, o art. 17-A, igualmente enxertado na lei 14.063/2020, leva a três ordens de considerações: (a) se o instrumento remanescer arquivado nas “pastas próprias” das instituições financeiras (inc. IV do art. 6º da lei 14.382/2022), tollitur quaestio. Nada há de novo no front, já que o instrumento jamais chegará ao Registro de Imóveis. Nesse caso, tanto faz que a banca adote a modalidade avançada ou qualificada de assinatura eletrônica (aparentemente já não poderá utilizar as assinaturas simples). No caso em que (b) o contrato seja enviado ao Cartório, a assinatura avançada poderá de fato ser adotada, mas isto é um plus em relação às regras anteriores (inc. II do artigo 221 da LRP, alterado). No ingresso de títulos em papel ou mesmo eletrônico (pela plataforma do ONR), não se exigia o reconhecimento de firmas dos contratantes e testemunhas… Agora, ao menos, a instituições financeiras (ou empresas privadas contratadas para tal mister) atrairão para si a responsabilidade autenticatória das firmas dos contratantes, deslocando inteiramente o eixo das responsabilidades civis, penais e administrativas do registrador para os entes financeiros. Por fim, (c) a disposição legal não alcança o extrato, já que ele não representa “instrumentos particulares com caráter de escritura pública”, nem é assinado pelos “partícipes dos contratos” (dicção do art. 17-A da Lei de Assinaturas Eletrônicas).
Por fim, para não deixar passar a oportunidade, note-se que a manutenção inalterada do inc. III do art. 6º da lei 14.382/2022 abre a janela para que todo e qualquer instrumento particular, portado e “autenticado” pelo próprio interessado (art. 6º da lei 14.382/2022), possa aceder ao registro por meio de extratos apresentados por tabelião de notas, “hipótese em que este arquivará o instrumento contratual em pasta própria” (inc. III do dito art. 6º).
A barafunda legislativa se complexifica a cada emenda da emenda. Espera-se que a Corregedoria Nacional de Justiça possa colocar o assunto em bom rumo sistemático, nos termos do inc. VIII do art. 7º da lei 14.382/2022.
Voltando à vaca fria…
Como decíamos ayer, compartilho com a comunidade de estudiosos de direito registral as ligeiras reflexões que vão logo baixo, buscando contribuir com os debates e discussões que se seguirão até a regulamentação de toda a infraestrutura do SERP pela Corregedoria Nacional de Justiça7.
Para maior conforto, resolvi segmentar esta série em três capítulos. Com isso, mantenho o padrão enxuto da Coluna Migalhas Notariais e Registrais, e não canso em demasia os nossos leitores. Boa leitura!
Assinaturas eletrônicas – dispersão sistemática na regulação
De partida, é preciso destacar a falta de rigor sistemático no tratamento da matéria nas várias leis que se sucederam ao longo do tempo. Desde o advento da MP 2.200-2, de 2001, até a recente reforma da LRP, muitas leis e regulamentos advieram, tornando pedregosa a tarefa de discernir o que deva prevalecer como referência a orientar os operadores e órgãos reguladores em relação às assinaturas eletrônicas. Pergunta-se: afinal, para a transmissão ou oneração de bens imóveis será obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada ou será admitida a avançada?8
Comecemos por assinalar que as leis de regência, para o caso do Registro de Imóveis, são: a MP 2.200-2/2001 (§ 1º do art. 10) e a lei 14.063/2020 (inc. IV, § 2º, do art. 5º). Entretanto, recentemente se vem insinuando no ordenamento legal a admissibilidade de utilização de assinaturas avançadas para alguns casos específicos. Os exemplos são os seguintes:
a) Registro Mercantil. Registro de atos perante as juntas comerciais – letra “c”, § 1º, do art. 5º c.c. inc. IV do mesmo artigo da Lei 14.063/2020;
b) Cédulas escriturais de Produto Rural. Inciso II, §4º, do art. 3º da lei 8.929/1994, na redação dada pela Lei 14.421/2022;
c) LRP – art. 17 e parágrafos c.c. art. 38 da Lei 11.977/2009, alterados pela lei 14.382/2022.
Questiona-se: os dispositivos legais supra, que sancionam sua utilização, devem ser consideradas hipóteses excepcionais em relação às regras gerais? No caso do Registro de Imóveis, especialmente, as assinaturas avançadas poderão ser utilizadas tout court?
Registro de atos perante as juntas comerciais
A lei 14.063/2020 criou uma exceção à exigência da assinatura eletrônica qualificada. Vejamos o quadro legal:
Art. 5º [..].
§ 1º […]
II – a assinatura eletrônica avançada poderá ser admitida, inclusive: […]
c) no registro de atos perante as juntas comerciais;
§ 2º É obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada:
IV – nos atos de transferência e de registro de bens imóveis, ressalvado o disposto na alínea “c” do inciso II do § 1º deste artigo;
Para compreendermos perfeitamente o quadro delineado, é preciso coordenar estes dispositivos com a legislação atinente ao registro do comércio. Assim, tanto a Lei 8.934/1994 (art. 85), quanto a lei 6.404/1976 (§ 2º do art. 98 e art. 224), o decreto 1.800/1996 e a IN-DIRE 81/2020, todos eles preveem que a certidão dos atos constitutivos e de suas alterações constitui título inscritível no Registro de Imóveis.
A autenticação dos atos praticados perante as juntas comerciais, bem como as certidões expedidas pelo órgão, ambas admitem a utilização da assinatura eletrônica avançada. As certidões podem ser assinadas com certificados digitais da ICP-Brasil, mas poderão sê-lo, igualmente, por “qualquer outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, nos termos do § 2º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, e da lei 14.063, de 23 de setembro de 2020” (art. 104 da IN-DIRE 81/20209).
Entretanto, as certidões, depois de expedidas em forma digital, serão disponibilizadas “nos respectivos sítios na internet em formato PDF” (art. 104, cit.). Nestes casos, será sempre possível conferir a autenticidade da certidão no site da própria junta comercial, a exemplo do que ocorre rotineiramente com a reprodução de peças processuais dos tribunais brasileiros. No caso de autos digitais, deve-se prover “elementos que permitam verificar a sua autenticidade em endereço eletrônico para esse fim, disponibilizado nos sítios do Conselho Nacional de Justiça e de cada um dos Tribunais usuários do Sistema Processo Judicial Eletrônico – Pje”10.
Este aspecto de autenticação não passou desapercebido pela juíza titular da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo na sentença prolatada no Processo 1112167-65.2022.8.26.0100, de onde se colhe:
“Outrossim, a autenticidade da certidão apresentada, […] pode ser confirmada no portal mediante o código de autenticação (omissis) anotado no rodapé do documento, onde também se encontra a informação de que a JUCESP garante a autenticidade do registro e da Certidão de Inteiro Teor quando visualizados diretamente no seu portal eletrônico”11.
Este microssistema confere aos instrumentos que acedem ao Ofício Imobiliário um grau de segurança bastante aceitável em relação à criticidade da decisão inscritiva (art. 7º da Lei 14.129/2021).
Cédulas escriturais e as garantias imobiliárias
Vimos que se admite o uso de assinatura eletrônica avançada ou qualificada na emissão de cédulas de produto rural emitidas em forma escritural, quando carregarem garantias reais mobiliárias ou imobiliárias (inc. II, § 4º, do art. 3º da lei 8.929/1994, na redação dada pela lei 14.421/2022).
A emissão de tais cédulas pode ser feita em forma escritural ou cartular. Vale a pena nos demorarmos um pouco na compreensão das ditas figuras. A distinção se acha originariamente consagrada na lei 10.931/2004 (§ 4º do art. 18). Em brevíssima síntese, podemos dizer que a cédula escritural é a destinada a custódia nas instituições custodiantes regulamentadas pelo Banco Central do Brasil. A cédula escritural tanto pode ser emitida em forma cartular, quanto eletrônica – sendo que esta última haverá de se tornar a regra absoluta12.
Para compreendermos com clareza o microssistema representado pelo registro e custódia das cédulas de crédito em entidades exógenas ao sistema registral pátrio, é preciso retroceder a investigação a alguns poucos anos. Seu début parece ter ocorrido com o advento da Lei 12.543/2011, que introduziu o art. 63-A na Lei 10.931/2004. Posteriormente, a lei 13.476/2017 revogaria dito dispositivo e alteraria o art. 26 da lei 12.810/2013 para dispor acerca da “constituição de gravames e ônus, inclusive para fins de publicidade e eficácia perante terceiros, sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado”.
Note-se – aqui também – a progressiva apropriação de expressões peculiares do sistema de publicidade jurídica usadas de modo uniforme há muitas décadas13. São sintomas de uma mudança paradigmática a qual aludi logo acima. Esta viragem, por si só, é um claro signo do lento processo de apropriação das atividades registrais por entidades pararregistrais14.
A custódia e o registro de tais títulos de crédito, garantidos por bens móveis ou imóveis, se dá em entes centralizados, exógenos ao sistema registral, embora a garantia real imobiliária ainda se constitua pela inscrição no Registro de Imóveis competente (§ 2º do art. 12 da mesma Lei 8.929/1994, dentre outros). A centralização de dados se tornou uma tendência que parece exercer uma força atrativa irresistível – tropismo registral, como disse alhures15. A dança do art. 42-A da Lei 8.935/1994, incrustrado na Lei dos Notários e Registradores, é um exemplo, mas não o único16.
Voltando à CPR, é importante destacar que as alterações introduzidas na lei foram justificadas na mensagem de encaminhamento da MP 1.104/2022 ao Congresso Nacional, da qual se colhe o seguinte:
“Considerando os níveis de confiança das assinaturas estabelecidos pela lei 14.063, de 2020, e a necessidade de permitir maior liberdade para que as partes contratantes definam o nível de confiança que melhor atendam aos seus interesses negociais, proponho que para a assinatura da CPR e do documento que contenha a descrição dos bens vinculados em garantia possam ser utilizados os três níveis de assinatura eletrônica (simples, avançada e qualificada); e que, no registro e na averbação de garantia real vinculada à CPR, constituída por bens móveis e imóveis, possam ser utilizadas as assinaturas eletrônicas avançada ou qualificada”17.
A mensagem alude à maior liberdade negocial para que as partes possam definir o nível de confiança que melhor atenda aos seus interesses, sopesados os níveis de risco em relação à “criticidade da decisão, da informação ou do serviço específico” (art. 7º da Lei 14.129/2021). Este é o eixo da questão: em que casos a assinatura avançada pode ser admitida, garantindo-se um nível tolerável e administrável de confiança e segurança nas transações que redundam na mutação jurídico-real? A lei o admite, é certo, mas não discrimina os casos. É preciso, portanto, antes de regulamentar a sua utilização, compreender o contexto em que o dispositivo autorizador calha.
As disposições da lei da CPR (e da própria LRP) devem coordenar-se logicamente com a Lei 14.063/2020, norma geral que a ilumina e confere um sentido racional ao microssistema. Note-se aqui um pequeno e fundamental detalhe: a assinatura avançada será admitida exclusivamente nas hipóteses em que sua adoção seja consentida e reconhecida como válida pelas partes ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento. É o que nos revela o dito inc. II, in fine, do art. 4º da Lei 14.063/2020. Para maior clareza, eis o que nos revela o dispositivo:
“assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento (.)” (g. n.).
O caráter excepcional de admissão da assinatura avançada permite sua utilização no caso de as partes (ou a pessoa a quem for oposto o documento) aceitarem-na antecipadamente. O prévio acordo entre as partes – ou a falta de impugnação daquele contra quem foi produzido o documento, ou em relação a quem seus efeitos se produzirão – gera a autenticação, nos termos dos incisos II e III do art. 411 do CPC18.
A mensagem ministerial, veiculada ao Congresso Nacional, não alude a terceiros – i.e., a quem poderá ser oposta as garantias reais cartulares, especialmente porque a eficácia e a oponibilidade dos direitos reais se irradiam erga omnes, colhendo, naturalmente, os sucessores a que título for. Neste ponto, abre-se um campo fértil para eventuais disputas judiciais, que se resolveriam, em grande medida, com a predefinição da autoria e integridade do instrumento, evitando-se eventual judicialização e o elevado custo transacional que podem incorrer as partes nas suas transações de crédito com garantias imobiliárias adjetas.
Não custa relembrar que os Registros Públicos atuam na esfera ante judicial, sistema de segurança jurídica preventiva de conflitos e litígios. Uma vez desencadeado o conflito de interesses, judicializada a demanda, abre-se a dilação probatória e as partes produzirão livremente as provas que calharem (art. 369 do CPC). Sabemos que isso é tudo o que o sistema registral não é, não promove, nem fomenta.
A assinatura qualificada, gozando das mesmas garantias que a assinatura manuscrita e com firma reconhecida, aporta um plus: o instrumento assinado com os certificados da ICP-Brasil, preenchidos os requisitos legais, gera os efeitos de validade, autenticidade e eficácia ex lege. Note-se que estes potentes efeitos decorrem diretamente da própria lei e não dependem nem do prévio reconhecimento de validade entre as partes, nem da aceitação pela pessoa a quem for oposto o documento (nem, tampouco, de sucessores a que título for). Os documentos eletrônicos firmados com assinaturas qualificadas já nascem com estes atributos, diferentemente das demais modalidades (simples e avançada). A assinatura qualificada – diz o texto legal – é “a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos” (§ 1º do art. 4º da lei 14.063/2020).
A Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, acolhendo o parecer do magistrado JOSUÉ MODESTO PASSOS, consagrou o entendimento de que, no caso de assinaturas qualificadas (ICP-Brasil), “as declarações constantes dos documentos eletrônicos presumem-se desde logo verdadeiros em relação aos signatários (Cód. Civil, art. 219, caput), sem mais. Caso sejam empregados outros meios de comprovação de autoria e integridade, essas declarações presumem-se verdadeiras entre os contratantes, mas não são ipso iure oponíveis a terceiros, que primeiro têm de verificar, junto aos relativos sites certificadores, com a segurança necessária, a autenticidade do que está aposto”19.
É preciso levar em consideração a natureza singular dos direitos reais. A propriedade não se extingue pelo decurso do tempo20 e as assinaturas avançadas, dependendo de sua fonte certificadora (normalmente empresas privadas), podem perder-se na nuvem de elétrons com o passar do tempo. O surgimento e desaparecimento de empresas “ponto com” ocorre amiúde em face dos impactos de processos disruptivos da economia digital. A perenidade dos atos cartoriais reclama o tratamento técnico seguro e adequado.
Enfim, admitida que seja a recepção pelos Registros Imobiliários das CPR’s, firmadas com assinaturas avançadas, a hipótese deve alinhar-se com a exceção criada na própria LRP (inc. II do art. 221), ao dispor acerca dos instrumentos particulares oriundos de “instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário”. Eis um típico exemplo de substituição de segurança jurídica por segurança econômica e tecnológica21.
No próximo artigo, vamos ajustar ainda mais o foco: assinatura avançada no Registro de Imóveis.
1 Provimento CN-CNJ 139, de 1º/2/2023, Dje de 2/2/2021, Min. LUÍS FELIPE SALOMÃO. Acesso aqui.
2 JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Gestão documental no Registro de Imóveis – A reforma da LRP pela lei 14.382/2022. Revista de Direito Imobiliário, Vol. 93, jul.-dez. 2022, p. 13 et seq. Sobre o tema, v. dossiê CNJ/CONARQ.
3 Recomendo a leitura dos seguintes artigos, todos publicados no Migalhas Notariais e Registrais: SERP – havia uma pedra no caminho, em que analiso a redação defectiva do inc. III do mesmo art. 6º da Lei e, especialmente, Extratos, títulos e outras notícias – Pequenas digressões acerca da reforma da LRP (lei 14.382/22), no qual critico a confusão criada com os títulos inscritivos. Acesso aqui.
4 JACOMINO. Sérgio. Extratos, títulos e outras notícias – Pequenas digressões acerca da reforma da LRP (lei 14.382/22), op. cit.
5 Id. Ibidem.
6 A barafunda terminológica se espraia por todo o corpo da lei. A expressão títulos se acha em vários quadrantes com o sentido próprio – art. 172, n. 3 e 4, III, art. 176 etc.
7 As nótulas que compõem o presente artigo decorreram da excelente interlocução travada com o Prof. Dr. RICARDO CAMPOS, da Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha). Em virtude da sua nomeação para compor o ilustre Conselho Consultivo do Agente Regulador do ONR (Portaria CN-CNJ 7, de 31/1/2023), é imperioso consignar que as conclusões aqui esboçadas são de minha exclusiva responsabilidade e não expressam, necessariamente, as opiniões do ilustre professor.
8 A classificação e definição legal de assinaturas eletrônicas simples, avançada e qualificada acha-se no art. 4º da lei 14.063/2020.
9 IN-DREI 81, de 10/6/2020, alterada pela IN DREI 55, de 2/6/2021. Acesso aqui.
10 V. § 1º do art. 4º da Resolução CNJ 185, de 18/12/2013. Acesso aqui. O mesmo exemplo encontramos com os notários, que emitem o seu “manifesto notarial” que aponta para o site do próprio Colégio Notarial do Brasil onde se pode baixar documentos, traslados e certidões assinados com a assinatura qualificada.
11 Processo 1VRPSP 1112167-65.2022.8.26.0100, j. 21/11/2022, Dje 23/11/2022, Dra. LUCIANA CARONE NUCCI EUGÊNIO MAHUAD. Acesso aqui.
12 V., pode exemplo, o § 4º do art. 18 da lei 10.931/2004: “A emissão da CCI sob a forma escritural ocorrerá por meio de escritura pública ou instrumento particular, que permanecerá custodiado em instituição financeira”. Remeto o leitor para o pequeno roteiro elaborado por mim: Item 4 – que diferença existe entre a CCI cartular e a escritural? In JACOMINO. S. Cédula de Crédito Imobiliário – roteiro prático para o registrador. In Boletim Eletrônico do IRIB n. 593. São Paulo: IRIB, 18/12/2002. Acesso aqui.
13 A expressão “gravames” não se acha consagrada no ordenamento civil e integra o dialeto da novilíngua de instituições financeiras. Para uma abordagem detalhada das expressões que hoje transitam no sistema, V. JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 2022. Acesso aqui.
14 Em relação ao tema, em outro artigo busquei demonstrar como os ativos, títulos e valores mobiliários, custodiados e registrados em entidades pararregistrais, acabaram por assimilar a transmissão da propriedade fiduciária imobiliária pela via de cessão de direitos creditórios, alienação esta que se dá fora do sistema do direito civil. V. JACOMINO. Sérgio. Cédula de Crédito e o Registro Eletrônico de Cessões Vinculadas a Direitos Reais de Garantia. No prelo.
15 No discurso proferido na abertura do 38º Encontro Regional dos Oficiais de Registro de Imóveis, realizado em 24/6/2019 na cidade de Cuiabá, MT, questionava os registradores nos seguintes termos: “haveremos de nos vergar, numa espécie de tropismo incondicional aos influxos que nascem exclusivamente de necessidades do mercado financeiro? Vamos depositar nas mãos de agentes e representantes dessa magnífica força do mercado imobiliário a reengenharia do próprio sistema registral?”. São Paulo: Irib. JACOMINO. Sérgio. O sentido e a direção – a charada do registrador. 24/6/2019. Íntegra aqui.
16 O art. 42-A veio embarcado por emenda apresentada na tramitação MP 1.051/2021 (PLV 16/2021), consagrada afinal pela Lei 14.206/2021 (art. 25). Posteriormente, na conversão da MP 1.085/2021, o dispositivo que havia sido revogado por ela (inc. IV do art. 20) voltaria uma vez mais à balha. Mais recentemente, nos termos do art. 10 do Provimento CN-CNJ 130/2023, os ON’s, bem como os tabeliães e registradores, ficaram proibidos de “cobrar dos usuários do serviço público delegado valores, a qualquer título e sob qualquer pretexto, pela prestação de serviços eletrônicos relacionados com a atividade dos registradores públicos, inclusive pela intermediação dos próprios serviços, conforme disposto no art. 25, caput, da Lei n. 8.935 de 1994, sob pena de ficar configurada a infração administrativa prevista no artigo 31, I, II, III e V, da referida Lei”. O art. 42-A padece de regulamentação, mas afigura-se um cenário de limitada atuação do ente ali previsto. Anteriormente, v. JACOMINO. Sérgio. Agonia central – ou anomia registral? – bis. São Paulo: Observatório do Registro, 23.102021, acesso aqui.
17 EM nº 54/2022 ME, de 9/3/2022. Convertida na Lei nº 14.421 de 20/07/2022, ficou estabelecido que as partes elegerão “a forma e o nível de segurança da assinatura eletrônica que serão admitidos para fins de validade, eficácia e executividade” (§ 4º do art. 3º da Lei 8.929/1994). O tema da garantia de “executividade” remete, novamente, à ideia de prova pré-constituída e requisitos de caráter jurídico para segurança e previsibilidade dos atos e negócios jurídicos.
18 Pode ocorrer, eventualmente, a preclusão do direito de questionar a autenticidade do documento. EDcl no RMS 52044/DF, j. 23/10/2018, Dje 31/10/2018, Relator Min. OG FERNANDES. “Não havendo impugnação específica acerca da autenticidade dos documentos, mas apenas afirmação que deveriam ser reconhecidos em cartório, deve ser reconhecida sua validade”. V. NERY. Nelson. NERY. Rosa Maria de Andrade. CPC Comentado. 17ª ed. São Paulo: RT, 2019, p. 1.039, n. 2.
19 Processo CG 10.060/2022, decisão de 9/2/2022, Desembargador FERNANDO ANTÔNIO TORRES GARCIA. Acesso aqui.
20 “O sistema jurídico brasileiro”, diz Pontes, “não cogita da limitação da propriedade no tempo, salvo em se tratando de propriedade literária, artística, científica ou industrial (propriedade intelectual), ou quando ligada a certo gênero de exploração. Em princípio, a propriedade é perpétua”. Mais adiante, acentua que a “transferência da propriedade é perpétua, ou por todo o tempo em que ela subsista”. MIRANDA. Pontes de. Tratado. Tomo XI, Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 23, § 1.164, n. 3.
21 A dispensa do reconhecimento ocorre em outras hipóteses – especialmente de títulos de extração administrativa e os oriundos de instituições financeiras. V. JACOMINO. Sérgio. O instrumento particular e o Registro de Imóveis. Academia.edu, Jan. 2010, acesso aqui.
Sérgio Jacomino
Quinto Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo. Presidente do NEAR – Núcleo de Estudos Avançados do SREI. Ex-presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra. COLUNAS – MIGALHAS NOTARIAIS E REGISTRAIS
Fonte: Migalhas – quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023
SERP – havia uma pedra no caminho. Por Sérgio Jacomino
Registro em tempo de crise I e II por Sergio Jacomino
Serp, sistema eletrônico dos cartórios brasileiros passa a funcionar em 31 de janeiro de 2023
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