A segunda parte do artigo “Cancelamento de hipotecas – Assinatura avançada versus qualificada” escrito por Ségio Jacomino e publicado por Milhalhas, discute os padrões e requisitos para o processamento eletrônico de documentos no registro de imóveis no Brasil.
Aqui estão os pontos principais:
- Normas de Serviço: Documentos eletrônicos devem seguir a Infraestrutura de ICP-Brasil e a arquitetura e-PING, sendo preferencialmente gerados em XML ou PDF/A.
- Homologação Necessária: A plataforma utilizada para o envio de documentos eletrônicos deve ser homologada pelos órgãos correcionais.
- Assinaturas Digitais: As assinaturas em documentos particulares devem ser digitais e produzidas com certificado digital ICP-Brasil.
- Condições de Registro: Para o registro, o título deve ser nativamente digital ou desmaterializado por notário ou registrador, com assinatura digital ICP-Brasil.
O artigo enfatiza a importância da regulamentação e da segurança jurídica no processo de registro eletrônico de imóveis. Fique com o artigo.
Sérgio Jacomino, “Oficina notarial e registral: Cancelamento de hipotecas – Assinatura avançada versus qualificada – Parte I,” Publicação original em Migalhas Notariais e Registrais, 15/5/2024.
Por Sergio Jacomino
Os itens 365 e 366 do cap. XX das Normas de Serviço rezam:
- A postagem e o tráfego de traslados e certidões notariais e de outros títulos, públicos ou particulares, elaborados sob a forma de documento eletrônico, para remessa às serventias registrais para prenotação (livro 1 – Protocolo) ou exame e cálculo (livro de recepção de títulos), bem como destas para os usuários, serão efetivados por intermédio da Central Registradores de Imóveis.
- Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registro de imóveis deverão atender aos requisitos da Infraestrutura de ICP-Brasil – Chaves Públicas Brasileira e à arquitetura e-PING – Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico e serão gerados, preferencialmente, no padrão XML – Extensible Markup Language, padrão primário de intercâmbio de dados com usuários públicos ou privados e PDF/A – Portable Document Format/Archive, ou outros padrões atuais compatíveis com a Central de Registro de Imóveis e autorizados pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.
Aqui se reitera a necessidade de homologação da plataforma pelos órgãos correcionais nacional e estaduais. A própria 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo vem de decidir exatamente nesse sentido:
O título particular, portanto, pode ser acolhido em formato eletrônico, mas desde que estruturado conforme padrões próprios de arquitetura eletrônica para o recebimento de assinatura digital de todos os signatários e testemunhas.
No caso concreto, porém, as assinaturas das partes e das testemunhas não foram produzidas com certificado digital ICP-Brasil, como exigem o art. 5º, § 2º, IV, da lei 14.063/20, e o art. 324, § 1º, I, do provimento CNJ 149/23 (fls. 11/27 e 28/30).
A exigência, portanto, subsiste.1
Mais recentemente, a Eg. Corregedoria Geral de Justiça do nosso estado julgou improcedente recurso de parte interessada confirmando a negativa de averbação de cancelamento de hipoteca registrada. Diz o magistrado parecerista:
Como se vê, não basta que o título tenha sido encaminhado por intermédio do ONR – Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis e que o requerimento apresentado ao Oficial de Registro venha assinado digitalmente pelo apresentante. É preciso que o título seja nativamente digital (gerado eletronicamente em PDF/A e assinado com certificado Digital ICP-Brasil por todos os signatários), digitalizado com padrões técnicos ou, então, que tenha sido desmaterializado por qualquer notário ou registrador, gerado em PDF/A e assinado por ele, seus substitutos ou prepostos com certificado digital ICP-Brasil.2
O documento apresentado não se configura conforme as espécies indicadas na r. decisão.
Venho insistindo que a lei 14.382/22 acabou sancionando o que pode vir a ser uma monstruosidade: A ereção do particular à figura de agente autenticador de documentos encaminhados a registro. V. § 2º do art. 130 e art. 6º da lei 14.382/22.3 O envio dos títulos a registro tende a sujeitar-se às seguintes hipóteses:
mediante desmaterialização realizada por notário ou registrador (arts. 23 e 29 do provimento 100/20 do CNJ4 e art. 1º, § 4º, da lei 6.015/73); ou mediante apresentação na serventia, em meio físico; ou, ainda,
quando assinado digitalmente pelos representantes do credor, atendendo aos requisitos da Infraestrutura de ICP-Brasil (art. 17, § 1º, da lei 6.015/73, itens 366 e 366.5 do capítulo XX das NSCGJSP).
Além disso, o envio do documento deu-se pelas plataformas compartilhadas do ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico (protocolo eletrônico), infraestrutura igualmente dependente de regulamentação pela Corregedoria Nacional de Justiça.
Por fim, nunca é excessivo relembrar o disposto no § 5º do art. 5º da lei 14.063, de 23/9/20, que reza que, no caso de “conflito entre normas vigentes ou de conflito entre normas editadas por entes distintos, prevalecerá o uso de assinaturas eletrônicas qualificadas”. Está em causa a ausência de fé pública do apresentante de documentos “digitalizados com requisitos técnicos”, conforme se verá de passagem logo a seguir.
Conselho Superior da Magistratura de São Paulo
Depois do julgamento dos processos pela Corregedoria Geral de Justiça, o Eg. Conselho Superior da Magistratura do Estado visitaria o tema no julgamento da ap. civ. 1032116-25.2022.8.26.01145, tendo por objeto um instrumento particular de compra e venda e alienação fiduciária em garantia.
A parte interessada sustentava (s. m. j., de modo tergiversante) que o instrumento fora “devidamente assinado por todas as partes mediante certificação digital, em conformidade com o inc. I do art. 5º do decreto 10.278/20, dentro do padrão da infraestrutura de ICP-Brasil – Chaves Públicas Brasileira”. Todavia, o mesmo interessado declararia que a verificação e confirmação da validade das assinaturas apostas seriam feitas pelo acesso à plataforma privada, “via portal validador”, o que indica que a modalidade de assinatura eletrônica seria outra, não a qualificada e que estaria “em conformidade com o inc. I do art. 5º do decreto 10.278/20” (ICP-Brasil).
O Oficial corretamente identificara que o título não fora formado nos exatos termos do inc. I do art. 5º do decreto 10.278/20 (ICRP-Br), razão pela qual exigira a apresentação do título em formato “nato-digital e assinatura eletrônica de todos os subscritores ou no original”. De fato, o art. 5º contém três incisos – o primeiro deles trata exatamente da assinatura eletrônica qualificada, firmada com o certificado vinculado à ICP-Brasil (inc. III do art. 4º da lei 14.063/20 e § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/01). Extrai-se do texto do v. acórdão:
O oficial registrador informou que a plataforma utilizada para a assinatura do título só vale entre as partes que convencionam seu uso; que o título não foi assinado com certificação digital por todas as partes, nos termos do art. 5º do decreto 10.278/20, (omissis); que a assinatura eletrônica qualificada, isto é, com certificado digital ICP-Brasil de todas as partes, é obrigatória para a transmissão de imóveis, não bastando o relatório apensado ao fim do documento para esse fim.
O E. Conselho aludiu, de passagem, ao item 366.5 das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça, que admite o acesso de instrumentos públicos e particulares, portados por intermédio de plataformas eletrônicas, desde que se revista das seguintes formas: “documento digital nativo (não decorrente de digitalização) que contenha a assinatura digital de todos os contratantes”, verbis:
366.5. A recepção de instrumentos públicos ou particulares, em meio eletrônico, quando não enviados sob a forma de documentos estruturados segundo prevista nestas Normas, somente será admitida para o documento digital nativo (não decorrente de digitalização) que contenha a assinatura digital de todos os contratantes.
Parece extreme de dúvida que a utilização de assinaturas eletrônicas avançadas será eventualmente admitida, desde que haja a regulamentação pela Eg. Corregedoria Nacional de Justiça, como já demonstrado acima e nos casos excepcionais, como se verá em seguida.
Documentos digitalizados com requisitos técnicos
As respeitáveis decisões da CGJSP e CSMSP aludem aos “documentos digitalizados com requisitos técnicos”. A expressão foi decalcada do decreto federal 10.278, de 18/3/20, e daria apoio ao revogado provimento CNJ 94 de 28/3/20 (e ao sucedâneo CNN/CN/CNJ-Extra). Com base nesse quadro normativo, busca-se fundamentar o acesso de documentos digitalizados “com padrões técnicos”, ou seja, “aqueles que forem digitalizados de conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5º do decreto 10.278, de 18/3/20”.
Sempre é lembrado que a lei 12.682, de 9/7/12, autorizou a digitalização e o armazenamento em meio eletrônico e a reprodução de documentos públicos e privados (art. 2º-A), porém, desde que preenchidos os seguintes requisitos:
Para a garantia de preservação da integridade, da autenticidade e da confidencialidade de documentos públicos será usada certificação digital no padrão da ICP-Brasil – § 8º do art. 2º-A.
O processo de digitalização deverá ser realizado de forma a manter a integridade, a autenticidade e, se necessário, a confidencialidade do documento digital, com o emprego de assinatura eletrônica (art. 3º).
Os registros públicos originais, ainda que digitalizados, deverão ser preservados de acordo com o disposto na legislação pertinente.
Os documentos digitalizados deverão observar as legislações específicas e regulamento.
A digitalização de documentos feita nos termos da lei 12.682/12 deve observar os requisitos e padrões estabelecidos pelos órgãos competentes – em primeiro lugar, os órgãos do próprio Poder Judiciário. Por outro lado, todos os órgãos públicos devem observar os padrões técnicos estabelecidos nas diretrizes baixadas pelo arquivo nacional (inc. IV do art. 2-A do decreto 4.073/02). Os documentos que os registros públicos recebem, alteram, arquivam, geram (especialmente os atos próprios), seja em que meio for, são reputados documentos de preservação permanente, assim definidos no § 3º do art. 7º da lei 8.159/91. Mesmo os documentos microfilmados não podem ser descartados, mas devem ser recolhidos ao arquivo público (art. 13 do decreto 1.799/99). Este é o sentido do conjunto normativo representado pelos arts. 22 a 27 da LRP e art. 46 da lei 8.935/94.
A especificação dos tais padrões técnicos e metadados, exigidos pelo decreto, não foi até hoje estabelecida para o foro extrajudicial. No âmbito de incidência do decreto 10.278/20, coube ao CONARQ, por meio da resolução 48, de 10/11/21, a tarefa de especificar e estabelecer padrões e requisitos técnicos mínimos exigíveis para a garantia de validade (stricto sensu, i. e, em sua ordem) dos documentos digitalizados.6
O próprio Judiciário, no âmbito do CNJ, baixou a resolução 469, de 31/8/22, que estabeleceu critérios para a digitalização de documentos recepcionados e processados em sistemas de gestão documental (que não há para o extrajudicial). É necessário cumprir com os requisitos estabelecidos pela administração “de forma a garantir a integridade, a autenticidade, a confidencialidade, a disponibilidade e a preservação” de tais documentos.
A pergunta que sempre calha é esta: Quais são os padrões e requisitos técnicos que os documentos digitalizados devem observar para produzir os efeitos jurídicos que os habilite a ingressar no registro de imóveis? A resposta que sempre ocorre é esta: deve-se observar o padrão de digitalização (anexo I) e a inserção de metadados mínimos (anexo II do decreto 10.278/20).
Todavia, a realidade é que qualquer resposta que se dê a esta pergunta acaba sendo despicienda, já que nem os que digitalizam os títulos e os enviam ao registro de imóveis observam, em regra e rigorosamente, os critérios (que nem sequer estão pré-definidos para o extrajudicial), nem os cartórios, que os recepcionam, baseiam-se em regras e padrões uniformes (que igualmente não estão estabelecidos). Não há um programa de gestão documental em meios digitais para os cartórios brasileiros e isto deve ser curado com urgência.
Por fim, é preciso reconhecer ser admissível que essa modalidade de assinatura eletrônica – dita”avançada” – possa ser excepcionalmente utilizada, como reconhece o v. acórdão do CSMSP citado. A adoção de um processo modal de admissibilidade de ingresso de títulos ao registro de imóveis, permitiria a assinatura avançada nos casos de mera atualização administrativa dos atos de registro – averbações de casamento, construção, demolição, e várias outras espécies de atos que são praticados com base em documentos públicos, fidedignos, conservados e perenizados na fonte e cujas certidões expedidas sejam reputadas autênticas. Já a assinatura qualificada estaria reservada para as hipóteses de mutação da situação jurídica dos bens matriculados, consoante a regra do inc. IV, § 2º, do art. 5º da lei das assinaturas eletrônicas.
Segurança jurídica versus rapidez e agilidade
É preciso conciliar segurança jurídica com agilidade, eficiência e rapidez nos processos registrais. Como alcançar um equilíbrio entre esses valores? A resposta acha-se na lei: instrumentos notarizados ou assinados com assinaturas eletrônicas qualificadas.
Especialmente para garantia dos interesses do próprio credor hipotecário, todo o esforço para aparelhar os seus instrumentos com a garantia de segurança e fiabilidade é sobejamente compensado pela segurança jurídica das transações.
O cancelamento de hipoteca é um ato especialmente importante e de consequências gravosas se não praticado com todo o cuidado e precaução – o chamado “prudente critério” dosd atos normativos do CNJ.
Vale a pena conhecer a r. decisão que enfrentou a questão posta por este registrador. Ela pode ser consultada aqui.
Pedido de Providências – Averbação de Cancelamento de Hipotecas – Assinatura Eletrônica Avançada. Pedido de providências contra a negativa de averbação de cancelamento de hipotecas de imóvel matriculado. Termo de liberação de garantia hipotecária com assinatura eletrônica avançada, desatendendo às formalidades legais. Discute-se a aplicabilidade da lei 14.063/20 e da MP n. 2.200-2/01, especialmente após a recente alteração pela lei 14.063/24, quanto ao uso de assinaturas eletrônicas em atos de registro imobiliário. Considerando a importância da segurança jurídica nos atos registrais e a necessidade de observância às formalidades previstas na legislação, incluindo a exigência de assinaturas eletrônicas qualificadas para o cancelamento de hipoteca, julgou-se improcedente o pedido de providências, mantendo o óbice registral imposto pelo Oficial do Registro de Imóveis (ementa gerada pelo ChatDigestum). Decisão disponível aqui.
1 Processo 1153196-61.2023.8.26.0100, São Paulo, j. 17/11/2023, Dje 22/11/2023, Dra. Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad. Disponível aqui.
2 Processo CG 1054061-56.2022.8.26.0506, Ribeirão Preto, dec. de 8/3/2024, Dje 12/3/2024, Des. Francisco Eduardo Loureiro. Disponível aqui.
3 No RTD, JACAOMINO, Sérgio. Oficina notarial e registral: Instrumento particular. Título inscritível – Certidão de RTD. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 9 nov. 2022. Disponível aqui. No Registro de Imóveis, JACOMINO, Sérgio. SERP – havia uma pedra no caminho. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 9 nov. 2023. Disponível aqui.
4 O Provimento 100/2023 seria revogado pelo Provimento 149, de 30/08/2023 (Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra). Definiu-se a digitalização (ou “desmaterialização”) o “processo de reprodução ou conversão de fato, ato, documento, negócio ou coisa, produzidos ou representados originalmente em meio não digital, para o formato digital” (inc. VIII do art. 285). Tal processo ocorre no âmbito do CENAD – Central Notarial de Autenticação Digital dos notários (artigos 305 e 306 do CNN/CN/CNJ-Extra).
5 Ap. Civ. 1032116-25.2022.8.26.0114, Campinas, j. 9/4/2024, Dje 16/4/2024, Des. Francisco Eduardo Loureiro. Disponível aqui.
6 Os aspectos relacionados com a admissibilidade do “título digitalizado com padrões técnicos” foram abordados em JACOMINO. Sérgio. Original e cópia – o inebriante efeito especular da digitalização. Velhas questões, novos desafios. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 11 mar. 2024. Disponível aqui.
Fonte: Migalhas
Sergio Jacomino, presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR – Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.
Cancelamento de hipotecas – Assinatura avançada versus qualificada – Parte I
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