Dando seguimento ao artigo anterior, agora vamos ajustar o foco na adoção das assinaturas avançadas no Registro de Imóveis
Por Sérgio Jacomino
Assinatura avançada no Registro de Imóveis
Dando seguimento ao artigo anterior (Assinaturas Eletrônicas e a Lei 14.382/2022 – parte I)[1], agora vamos ajustar o foco na adoção das assinaturas avançadas no Registro de Imóveis.
Primeiramente, há de se distinguir muito bem as hipóteses que nos interessam.
De um lado a regra geral, estalão reitor que torna obrigatória a utilização da assinatura eletrônica qualificada nos “atos de transferência e de registro de bens imóveis” (inc. IV, § 2º, do art. 5º da Lei 14.063/2020)[2]; de outro, as hipóteses excepcionais em que a assinatura avançada poderá eventualmente ser utilizada.
Entretanto, e de um modo geral, a reforma não discrimina expressamente em que casos cada qual poderá ser admitida, deixando a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça regulamentar a utilização nos casos concretos.
Veremos que no Registro de Imóveis as assinaturas avançadas poderão ser utilizadas excepcionalmente, ou seja, nos casos que não envolvam atos de alienação ou oneração de bens imóveis. Nem mesmo a reforma da reforma da reforma (MP 1.162/2023) conseguiu consagrar, livre de dúvidas, a sua utilização no Registro de Imóveis[3].
Por esta razão, as hipóteses exceptivas deverão ser objeto de prudente regulamentação pela CN-CNJ (§§ 1º e 2º do art. 17 e art. 38 da Lei 11.977/2009, todos alterados pela Lei 14.382/2022).
Em outras palavras, o abrandamento de rigores e de exigências formais será possível, contudo, sempre em casos residuais, levando-se em conta os princípios que iluminam o conjunto normativo que dispõe sobre a matéria.
Assim, atos meramente administrativos, como averbação de construção, mudança de numeração predial, de denominação de logradouros, mutações de estado civil, demolição, reconstrução, reforma e de tantas outras situações congêneres – que não representam mutações jurídico-reais e que calham no âmbito conceitual do que se entende por mera averbação –, poderão ser firmados com assinaturas eletrônicas avançadas.
Elas podem, ainda, ser utilizadas nos casos de acesso ou de “envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet”, nos termos do § 1º do art. 17 da LRP, alterada pela Lei 14.382/2022.
Uma vez mais, a lei endereça a regulamentação à CN-CNJ (§ 2º). Nestes casos exceptivos, calham os pedidos postados pelo SERP (inc. IV do art. 3º da Lei 14.382/2022), além da expedição de certidões com base em autenticação pela plataforma do SERP, ONR ou da própria Serventia (§ 2º do art. 5º da Lei 14.382/2022).
Já os atos e negócios que impliquem mutações jurídico-reais, como os que transfiram, modifiquem, declarem, confirmem ou extingam direitos reais, nestes casos parece-nos indispensável o uso de assinatura eletrônica qualificada, visto que somente esta modalidade pode garantir a confiabilidade, integridade e autoria na relação jurídica consagrada no instrumento registrável (título).
Afinal, trata-se de garantir a validade e eficácia dos atos que acedem ao Registro de Imóveis e que produzem os potentes efeitos de constituição de direitos reais e de sua oponibilidade erga omnes.
A questão da autoria e integridade dos instrumentos privados
O requisito de autenticidade está diretamente ligado à identidade dos participantes do fenômeno comunicativo e integrativo do negócio jurídico. A autenticidade é a qualidade de tudo que provém de um autor, que seja original, genuíno.
A questão da autoria do documento é clássica no Direito. Diz AMARAL SANTOS que “a indagação da autoria do documento é de importância capital, tanto do aspecto teórico como do aspecto prático, pois que diz respeito à proveniência do documento, e, portanto, à verificação da fé que deve merecer”.
Emenda que “toda a teoria do documento se acha dominada pelo problema da sua paternidade” e ainda que, “especialmente no que diz respeito aos documentos privados, a questão da autoria do documento pode apresentar-se como a da própria identidade deste ou a sua eficácia”.
Em outras palavras, a autenticidade – expressão recorrente na legislação sobre assinatura eletrônica – indica que o documento provém de alguém certo e determinado (ou seguramente determinável): “a certeza de que o documento provém do autor nele indicado é o que se chama autenticidade”.
A presunção de autenticidade de um documento eletrônico, por sua vez, deriva da própria lei quando preenchidos seus requisitos (§1º do art. 10 da MP 2.200-2/2001; inc. II do art. 411 do CPC; inc. II do art. 18 da Lei 13.874/2019).
Sabemos, de sobejo, que a assinatura qualificada consagra a presunção de autenticidade, integridade, validade, confidencialidade e eficácia jurídica dos documentos eletrônicos. O tema da prova de autenticidade é especialmente delicado nos contratos de compra e venda de bens imóveis.
Os instrumentos lavrados por notários gozam de potentes efeitos de presunção, não só da sua própria formação, mas também dos fatos que o tabelião declarar que ocorreram em sua presença (art. 429 do CPC).
Os instrumentos públicos tabeliônicos gozam da fé pública notarial que somente poderá ser elidida por declaração judicial (art. 427 do CPC).
Já nos casos do instrumento particular, muito embora as declarações dos seus signatários presumam-se verdadeiras (art. 408 do CPC e art. 219 do CC), cessa a presunção de autenticidade quando ocorra sua impugnação (art. 428 do CPC). Apontei esta fragilidade na disrupção paradigmática do RTD:
“Com esta malsinada reforma agravou-se o quadro de incidentes de falsidade de documentos privados. Nos termos do art. 428 do CPC, cessa a fé do documento particular “quando for impugnada a sua autenticidade e enquanto não se comprovar a sua veracidade”.
Nota bene: a simples impugnação de autenticidade do documento faz cessar a fé do instrumento particular.
E isto por uma singela razão: tais títulos não gozam de fé pública, competência que só aos notários se reconhece e que vai impressa em todos os seus atos (inc. I do art. 411 do CPC cc. art. 3º da Lei 8.935/1994).
Bastará a impugnação da autoria (autenticidade) ou a impugnação do conteúdo (quando supostamente tenha ocorrido preenchimento abusivo) para que se ponha em dúvida o seu valor”.
O instrumento público (escritura notarial) é revestida do caráter de “indubitabilidade”, de onde procede “a verdade de todo o conteúdo intelectual dele, de modo que, havendo vício, tem de ser ouvido o notário, para se saber como se acha o original, perpetuador do ato”. Já os “documentos meramente probatórios, não somente provam o que provariam testemunhas que depusessem, como a sua apreciação é deixada inteiramente ao juiz”.
A tecnologia de criptografia assimétrica (ICP-Br) gera uma potente presunção legal que dispensa a prévia aceitação das partes ou da pessoa a quem for oposto o documento.
Os requisitos básicos para a pré-constitutividade de prova, no caso dos instrumentos levados a registro, são justamente a sua integridade e autenticidade.
Quando dizemos que um objeto digital tem “integridade”, queremos dizer que ele não foi corrompido ab origine, nem se modificou no decorrer do tempo, nem em razão de seu trânsito; em outras palavras, o objeto digital permanece íntegro, completo, não se tendo modificado o mesmo conjunto de bits que existiam quando de sua criação.
No ambiente da ICP-Brasil, diz-se que a autenticidade do documento se presume porque esta presunção dimana diretamente da cadeia sucessiva de certificação, cuja raiz é o próprio Estado.
É a autoridade estatal, ao fim e ao cabo, que provê as presunções de autenticidade e integridade dos documentos assinados com a chave criptográfica da ICP-Brasil, independentemente de qualquer aceitação prévia da contraparte, ou de sucessores, ou de terceiros.
A validade jurídica do ato decorre da própria lei que regula o procedimento de certificação digital e constitui a presunção relativa que acarreta a inversão do ônus da prova.
Em voto esclarecedor, o ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA deixou consignado o que se pode extrair do conjunto normativo em relação aos diversos graus de segurança e hierarquia que existem entre as modalidades de assinaturas eletrônicas:
“Como se verifica do § 2º, do art. 10 [da MP 2.020-2], outros meios de comprovação de autoria e integridade de documentos em forma eletrônica ou que utilizem certificados diferentes dos previstos na ICP-Brasil possuem aplicabilidade mais restrita, sendo necessário que sejam admitidos pelas partes como válidos ou aceitos pela pessoa a quem for oposto o documento.
Em outras palavras, é como se houvesse diferentes graus hierárquicos de força probante entre os contratos celebrados por meio eletrônico com o uso de assinatura digital certificada, a exemplo do que ocorre entre os documentos particulares firmados com assinatura e aqueles com firma reconhecida em cartório.
Assim, ao menos sob o regramento legal atualmente vigente, não há como equiparar um documento assinado com um método de certificação privado qualquer e aqueles que tenham assinatura com certificado emitido sob os critérios da ICP-Brasil.
No último caso, seria admissível a tese de que a validade do documento tem lastro na própria lei que instituiu a Infraestrutura de Chaves Pública, a MP nº 2.200-2/2001, ainda em vigor por ser anterior às modificações introduzidas pela Emenda Constitucional nº 32/2001”.
Este é, aliás, um dos pontos mais problemáticos da Lei 14.382/2022, que conta com disposições que buscam acomodar o uso de assinatura avançada no processo registral. Esta modalidade é frágil para os fins a que se destina. Assim se expressa RICARDO CAMPOS:
“Trata-se de assinatura lastreada em uma hierarquia de chaves privadas, ou seja, empresas privadas (inclusive instituições financeiras) fornecerão o serviço de assinatura, de modo que o serventuário não disporá de segurança suficiente para atestar sua veracidade e autenticidade, ampliando o risco de responsabilização a que está sujeito”.
Já tivemos ocasião de apreciar a questão da definição de autoria dos documentos que acedem ao Registro de Imóveis, especialmente os privados
. Os escritos particulares, para ingresso no Registro de Imóveis, necessitam munir-se de certos requisitos formais – como o reconhecimento de firmas.
Este requisito gera a presunção de autenticidade do instrumento. É o que se colhe do inc. I do art. 411 do CPC e, de resto, configura o sistema de segurança jurídica preventivo.
Em suma, a presunção de autoria (não repúdio) é um fenômeno que ocorre ex lege, tornando os instrumentos públicos e privados, assinados com as assinaturas qualificadas, sujeitos ao registro, aptos a produzir os seus regulares efeitos, independentemente de qualquer outra providência preliminar ou acessória[18].
Por fim, calha uma pequena nótula que revela a grande importância dada à autenticação dos documentos no ambiente judiciário.
O PL 1.259/2022, em fase de apreciação nas comissões da Câmara Federal, busca alterar o Estatuto da Advocacia e OAB (Lei 8.906/1994), para elencar, entre os direitos do advogado, o de ter reconhecida, “pela fé do seu grau”, a declaração de autenticidade dos documentos que fizer juntar aos autos de processo judicial ou administrativo.
Enquanto os registradores pugnam por abolir a autenticação notarial (ou o uso de assinaturas qualificadas), os advogados buscam atrair para si esta atribuição importantíssima para a prevenção de litígios, robustecimento da prova e segurança jurídica…
Dispersão legislativa – a necessidade de um olhar sistemático
A multiplicação de dispositivos legais que tratam da matéria reclama um olhar sistemático. Assim, calha indicar, igualmente, o disposto no art. 7º da Lei 14.129, de 29/3/2021, e de dois incisos do seu § 1º. São eles:
Art. 7º Os documentos e os atos processuais serão válidos em meio digital mediante o uso de assinatura eletrônica, desde que respeitados parâmetros de autenticidade, de integridade e de segurança adequados para os níveis de risco em relação à criticidade da decisão, da informação ou do serviço específico, nos termos da lei.
§ 1º Regulamento poderá dispor sobre o uso de assinatura avançada para os fins de que tratam os seguintes dispositivos:
I – art. 2º-A da Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012;
(…)
VII – art. 38 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009.
Note-se muito bem o seguinte: a Lei 14.129/2021 projeta as disposições do caput nos seus parágrafos e incisos; ou seja, a adoção da modalidade de assinatura avançada deve levar em conta requisitos de segurança adequados, “respeitados parâmetros de autenticidade para os níveis de risco em relação à criticidade da decisão, da informação ou do serviço específico” (art. 7º, in fine).
Aqui, a Corregedoria Nacional haverá de atuar com seu costumeiro e prudente critério, sopesando os riscos inerentes à inscrição de um título desfalcado de garantias de autoria e integridade.
Por outro lado, o âmbito de aplicação da mesma Lei 14.129/2021 (inc. I do art. 2º) e da Lei 14.063/2020 (art. 2º) abrange os órgãos do Poder Judiciário por expressa determinação legal (parágrafo único do art. 193 do CPC), alcançando, portanto, os chamados “órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público” (inc. III, § 4º do art. 103-B).
Estes se acham sob a permanente fiscalização e regulação do Poder Judiciário, consoante o art. 76 da Lei 13.465/2017; § 5º do art. 103-B da EC 45/2004, combinado com o inciso X do art. 8º do Regimento Interno do CNJ, ato normativo cujo fundamento de validade é extraído diretamente do art. 5º, § 2º, da dita EC nº 45/2004.
Outro aspecto importante, que não deve passar despercebido ao intérprete, é o fato de que o inc. I da Lei 14.129/2021, que aponta para a Lei 12.682/2012, deve ser combinado com o § 8º do art. 2º- A da mesma Lei 12.682/2021, alterado pela Lei 13.874/2019, que igualmente ilumina o quadro legal aqui analisado. Vejamos:
§ 8º Para a garantia de preservação da integridade, da autenticidade e da confidencialidade de documentos públicos será usada certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).
A própria Lei 14.382/2022, no artigo 7º, dispõe que “caberá à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça disciplinar o disposto nos arts. 37 a 41 e 45 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, e o disposto nesta Lei”. E destaca a necessidade de regulamentar um aspecto fundamental, indicado entre seus incisos:
“III – os padrões tecnológicos de escrituração, indexação, publicidade, segurança, redundância e conservação de atos registrais, de recepção e comprovação da autoria e da integridade de documentos em formato eletrônico, a serem atendidos pelo Serp e pelas serventias dos registros públicos, observada a legislação”.
Uma vez mais ocorre na lei o tema sensível que se tornou o calcanhar de Aquiles do sistema, a saber: a garantia de de autenticidade e integridade dos títulos e documentos que acedem o Registro de Imóveis e que pela Serventia são conservados (art. 26 da LRP c.c. art. 46 da Lei 8.935/1994).
Igualmente, se dá em relação aos documentos que são produzidos internamente e que se devam perenizar (livros, fichas, dossiês, bancos de dados etc.).
A mesma questão acha-se engastada no §5º do art. 19 da LRP, que determina que as certidões deverão ser fornecidas em meios eletrônicos com o uso de tecnologia que permita “a identificação segura de sua autenticidade”, conforme critérios estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça.
É óbvio que a integridade da certidão deverá ser igualmente garantida em todos os meios em que veiculada.
O Decreto 10.278/2019 e a equiparação de documentos físicos e digitalizados
Nas discussões sobre os efeitos das assinaturas eletrônicas alude-se, amiúde, ao Decreto 10.278, de 18 de março de 2020, que terá admitido a equiparação do documento digitalizado ao documento físico “para todos os efeitos legais” e “para a comprovação de qualquer ato perante pessoa jurídica de direito público interno”.
O Decreto em questão veio para conferir base legal à digitalização dos documentos físicos de instituições públicas ou privadas, além de determinar que eles tenham os mesmos efeitos jurídicos que os documentos originais.
Entretanto, vale lembrar as circunstâncias nas quais o Decreto 10.278/20 veio a lume: a pandemia do Covid-19 e a necessidade de rápida migração dos procedimentos e atos públicos e privados para o meio digital.
As disposições do Decreto 10.278/2020 (Art. 5º) serviriam de arrimo ao Provimento 94/2020 (§ 2º do art. 4º). Entretanto, faltou coordenar o dispositivo regulamentar federal com o disposto no art. 18 da própria lei regulamentada (Lei 13.874/2019).
De fato, dito decreto visou regulamentar, justamente, o disposto no inciso X, caput, do art. 3º da Lei nº 13.874/2019 e o art. 2º-A da Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012.
Entretanto, nota bene, o Decreto deve ser lido com as delimitações contidas expressamente na própria Lei 13.874/2019, por ele regulamentada. Esta condiciona a eficácia do disposto no inciso X do caput do art. 3º às seguintes hipóteses, in verbis:
“Art. 18 A eficácia do disposto no inciso X do caput do art. 3º desta Lei fica condicionada à regulamentação em ato do Poder Executivo federal, observado que:
I – para documentos particulares, qualquer meio de comprovação da autoria, integridade e, se necessário, confidencialidade de documentos em forma eletrônica é válido, desde que escolhido de comum acordo pelas partes ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento; e
II – Independentemente de aceitação, o processo de digitalização que empregar o uso da certificação no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) terá garantia de integralidade, autenticidade e confidencialidade para documentos públicos e privados”.
Voltamos, novamente, ao mesmo ponto já desenvolvido anteriormente. Parece lógico e natural que se exija, para os atos de registro de imóveis, a adoção das assinaturas eletrônicas qualificadas.
A alternativa prevista no inc. I, ainda que escolhida de comum acordo pelas partes, não tem o condão de vincular os sucessores (a que título for), nem obter ex ante a aceitação de terceiros, em face de quem se projeta a plena eficácia do direito real (fé pública registral), produzindo todos os seus efeitos legais (fala-se, apropriadamente, de eficácia erga omnes).
Para além da definição da espécie de assinatura a ser utilizada neste contexto, há que se ter em mente que os documentos recepcionados pelos registros públicos estão sujeitos a uma série de requisitos, além de serem definidos, prévia e obrigatoriamente, os padrões técnicos que devem ser observados (resolução mínima, formato do arquivo, metadados etc.).
Documentos de preservação permanente – padrões técnicos e metadados
De fato, a questão fundamental dos chamados documentos de preservação permanente (e os Registros Públicos produzem, acolhem e conservam documentos de preservação permanente) é a autenticidade dos documentos digitais, isto é, definição da autoria, integridade e confidencialidade, atributos que as demais modalidades podem eventualmente proporcionar, entretanto, sem conferir o mesmo grau de certeza, confiabilidade, perenidade e segurança jurídica da assinatura qualificada.
Somada às dificuldades técnicas de determinar a validade de um documento eletrônico no curso do tempo, há também a questão da atribuição legal de competência para “fiscalizar” a presença desses requisitos nas assinaturas avançadas.
Quem fiscaliza este ecossistema? O próprio mercado? Sabemos que o Registro de Imóveis, dentro de suas competências, pode cuidar da integridade dos documentos que a ele acedem, mas somente a partir daí.
A garantia de autenticidade somente é possível em relação àqueles documentos que o próprio Registro Imobiliário produz.
A autenticidade dos documentos, públicos e privados, sempre foi, historicamente, uma atribuição do notário, que a realiza na identificação e qualificação das partes (presencial ou virtualmente, com a plataforma e-Notariado), gerando a fé pública (prova plena, art. 215 do CC; art. 405 do CPC e art. 3º da Lei 8.935/1994); em se tratando de assinaturas eletrônicas qualificadas, a presunção de autenticidade e integridade é afiançada pelo próprio Estado, por meio do ente público ou privado que possui competência para registro e emissão do certificado digital.
Nos termos do art. 2º- A da Lei 12.682, de 9/7/2012, a digitalização de documentos deve observar os padrões técnicos estabelecidos por órgãos de regulamentação competentes.
Em primeiro lugar, é preciso sublinhar que os órgãos competentes para o estabelecimento de normas e padrões uniformes para os serviços notariais e de registro são os do Poder Judiciário – Corregedoria Nacional de Justiça (normas gerais – primárias) e corregedorias estaduais (normas específicas e residuais).
Por outro lado, não há (ainda) “padrões técnicos estabelecidos” por quaisquer órgãos da administração judiciária para a estruturação dos documentos eletrônicos apresentados a registro e por eles conservados. Nem em relação aos livros e demais documentos por eles mantidos.
Além disso, todos os órgãos e entes públicos (inclusive o Judiciário) devem observar as diretrizes baixadas pelo Arquivo Nacional (inc. IV do art. 2-A do Decreto 4.073/2002).
A Lei nº 8.159/1991, por sua vez, estabeleceu a política nacional de arquivos públicos e privados e determinou ser dever do Poder Público promover a gestão documental e a proteção especial a documentos que ostentem elementos de prova e informação (art. 1º).
Em seu artigo 20, a Lei define a competência e o dever inerentes dos órgãos do Poder Judiciário Federal de proceder à gestão de documentos produzidos em razão do exercício de suas funções, tramitados em juízo e oriundos de cartórios e secretarias, bem como de preservar os documentos, de modo a facultar aos interessados o seu acesso.
Por fim, é relevante apontar que o inc. II do art. 62 da Lei 9.605/1998 tipifica como crime contra o Patrimônio Cultural a deterioração, inutilização e destruição de arquivos e registros protegidos por lei, ato administrativo ou decisão judicial.
Os documentos recepcionados, gerados ou mantidos no acervo dos Registros Públicos, seja em que meio for, são reputados documentos de preservação permanente, assim definidos no § 3º do art. 7º da Lei 8.159/1991.
Dessa espécie são os livros, títulos, documentos, papeis etc. (art. 22 e seguintes da LRP c.c. art. 46 da Lei 8.935/1994).
Mesmo os documentos microfilmados se enquadram na espécie de documentos de preservação permanente; eles não podem ser descartados, mas devem ser recolhidos ao arquivo público. É de se observar o art. 13 do Decreto 1.799/1996, que regulamentou a lei de microfilmagem:
“Os documentos oficiais ou públicos, com valor de guarda permanente, não poderão ser eliminados após a microfilmagem, devendo ser recolhidos ao arquivo público de sua esfera de atuação ou preservados pelo próprio órgão detentor”.
O mesmo em relação aos documentos de preservação permanente digitalizados nos termos do Decreto 10.278/2020:
“Outra questão que deve ser observada, em todos os fluxos, é a digitalização dos documentos considerados permanentes nas TTDAs [tabela de temporalidade de documentos arquivísticos] da instituição produtora. Como disposto no Decreto nº 10.278/2020, embora possam ser digitalizados, visando, por exemplo, viabilizar a produção e a tramitação de seu representante digital, seus originais não podem ser descartados”.
Não se deve olvidar, por fim, que o art. 6º da Lei 12.682/2012 prevê que os “registros públicos originais, ainda que digitalizados, deverão ser preservados de acordo com o disposto na legislação pertinente”. Há “legislação pertinente” em pleno vigor…
É evidente que os instrumentos particulares objeto de registro passam a integrar o acervo do Registro de Imóveis, dando o oficial certidão quando rogado. Esta era a redação original do art. 194 da LRP, lamentavelmente alterada pela reforma. Resistindo, contudo, à vaga reformista, remanesce o disposto no art. 18, in fine, da LRP, a dar calço às disposições legais que exigem o depósito e gestão dos documentos nas Serventias, dos quais o oficial deve dar informações e certidões[33].
Por fim, não custa repisar aqui que a recente reforma da reforma da reforma (MP 1.162/2023) não representou grandes novidades. O inc. II do art. 221 da LRP, por ela alterado, não alcança o chamado extrato (notice registration), já que ele não se afeiçoa a quaisquer “instrumentos particulares com caráter de escritura pública”, nem é assinado pelos “partícipes dos contratos” (dicção do art. 17-A da Lei de Assinaturas Eletrônicas, alterada pela MP 1.162/2023)[34]. A barafunda legislativa se agrava a cada novo ato…
No próximo artigo, com o qual encerramos esta série, vamos enfrentar os problemas encontrados no Provimento CN-CNJ 94/2020, sua adoção no interregno da pandemia e sua perenização pelo Provimento CN-CNJ 90/2022.
[1] A MP 1.162/2023 aprofunda a barafunda relacionada à qualificação técnica dos títulos inscritíveis. A assinatura avançada poderá ser utilizada nos contratos do financiamento imobiliário (art. 17-A da Lei 14.063/2020). Os extratos não são contratos (nem títulos, em sentido próprio). V.
[2] As NSCGJSP preveem no Cap. XX: “366. Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registro de imóveis deverão atender aos requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e à arquitetura e-PING (Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico) e serão gerados, preferencialmente, no padrão XML (Extensible Markup Language), padrão primário de intercâmbio de dados com usuários públicos ou privados e PDF/A (Portable Document Format/Archive), ou outros padrões atuais compatíveis com a Central de Registro de Imóveis e autorizados pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo”.
[3] Vide JACOMINO. Sérgio. Assinaturas eletrônicas e a lei 14.382/2022 – Parte I – Breves anotações e sugestões para sua regulamentação, cit. na nota 1
[4] Authentĭcus, a, um, adj., I. that comes from the author, authentic, original, genuine. A Latin Dictionary. Founded on Andrews’ edition of Freund’s Latin dictionary. revised, enlarged, and in great part rewritten by. Charlton T. Lewis, Ph.D. and. Charles Short, LL.D. Oxford. Clarendon Press. 1879.
[5] SANTOS. Moacyr Amaral. Prova Judiciária no Cível e Comercial. Vol. IV, 3ª. Ed. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 42.
[6] SANTOS. Moacyr Amaral. Op. cit. p. 43.
[7] SANTOS. Moacyr Amaral. Op. cit. p. 53.
[8] Art. 411. Considera-se autêntico o documento quando: (…) II – a autoria estiver identificada por qualquer outro meio legal de certificação, inclusive eletrônico, nos termos da lei.
[9] “II – independentemente de aceitação, o processo de digitalização que empregar o uso da certificação no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) terá garantia de integralidade, autenticidade e confidencialidade para documentos públicos e privados”.
[10] ARENHART. Sérgio Cruz. Breves Comentários ao CPC. WAMBIER. Teresa Arruda Alvim, et. al. Org. São Paulo: RT, 2015, p.1.087. V. também BUENO, Cássio Scarpinella.
Comentários ao código de processo civil. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2017, comentários aos arts. 318 a 538. NERY & NERY sustentam, firmes em PONTES, que breve comentário do art. 428 que não se pode cogitar de “cessação da fé do documento, pois não há fé enquanto não reconhecida a assinatura, seja por tabelião, por escrivão ou pelo próprio signatário.
Se a assinatura era falsa, jamais houve fé”. NERY. Nelson. NERY Rosa M. de A. CPC comentado. 17a ed. São Paulo: RT, 2018, p. 1.049. Recomendo a leitura do RESp 1846649 / MA, j. 24/11/2021, Dje 9/12/2021, rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE. Neste aresto há farta indicação de doutrina.
[12] PONTES DE MIRANDA. Comentários ao CPC. Tomo IV. Rio de Janeiro: Forense. 1974, p. 360.
[13] REsp 1.495.920 / DF, j. 15/5/2018, Dje 7/6/2018, rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO. O trecho citado se trata do voto vista (vencido) do Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA.
[14] CAMPOS. Ricardo. Degeneração do regime jurídico das serventias e da proteção de dados pelo Serp. Consultor Jurídico, 3.5.2022. Acesso
[15] JACOMINO, Sérgio. Extratos, títulos e outras notícias – Pequenas digressões acerca da reforma da LRP (lei 14.382/22). São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 2022. Acesso
Importante distinguir as espécies de documentos – títulos, extratos, papeis etc. – Expressões que hoje ocorrem na Lei 6.015/1973. Em relação ao registro, ingressam os instrumentos (art. 221).
A confusão terminológica se agrava com a reforma da LRP. Por exemplo, no § 1º do artigo 188 há de tudo – escrituras, documentos e títulos, acarretando uma espécie de sinonímia forçada quando não se distinguem claramente as espécies na própria tessitura legal.
[16] Nem mesmos as testemunhas têm sido exigíveis em títulos executivos firmados eletronicamente… REsp 1.495.920/DF, j. 15/5/2018, DJe 7/6/2018, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO. Este precedente orientou uma tendência que se firmou no STJ.
Todavia, o acórdão é anterior à Lei 14.063/2020 e há certa confusão entre as assinaturas eletrônicas qualificadas (ICP-Brasil) e avançadas, a cargo de empresas privadas (comprova.com).
[17] Os instrumentos particulares cujas firmas são reconhecidas pelo tabelião são reputados autênticos. AMARAL SANTOS: “O reconhecimento, como ato público complementar do instrumento particular, fazendo fé da própria autenticidade, autentica esse instrumento”. Op. cit. p. 191.
[18] Por autenticidade, entende-se o pressuposto da autoria, ou seja, a necessidade de que a autoria seja identificável.
Já o atributo da integridade se refere à veracidade, compreendida esta como a certeza de que o documento não poderá ser alterado após pactuado e assinado. PECK. Patrícia. Direito Digital, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2016, pág. 540.
[19] Art. 2º-A. Fica autorizado o armazenamento, em meio eletrônico, óptico ou equivalente, de documentos públicos ou privados, compostos por dados ou por imagens, observado o disposto nesta Lei, nas legislações específicas e no regulamento.
[20] Art. 2º Esta Lei aplica-se: I – aos órgãos da administração pública direta federal, abrangendo os Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, incluído o Tribunal de Contas da União, e o Ministério Público da União.
[21] A EMI nº 00089/2020 ME CC MS, de 16/6/2020, que encaminhou a MP 983/2020 à apreciação do Legislativo já deixava consignado que “as novas regras sobre assinatura eletrônica aqui propostas não se aplicam apenas ao Poder Executivo federal, mas a todos os poderes e todos os entes federados.
Portanto, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios também são beneficiários diretos das medidas aqui propostas”.
[22] “Art. 193. Os atos processuais podem ser total ou parcialmente digitais, de forma a permitir que sejam produzidos, comunicados, armazenados e validados por meio eletrônico, na forma da lei. Parágrafo único. O disposto nesta Seção aplica-se, no que for cabível, à prática de atos notariais e de registro”.
[23] O Regimento Interno do CNJ (Resolução 67, de 3 de março de 2009) é “ato normativo primário, cujo fundamento de validade é extraído diretamente do art. 5º, § 2º, da EC nº 45/2004”, consoante vem decidindo o STF (MS 35.151, j. 19/9/2017, Dje 21/9/2017, rel. Min. ROSA WEBER).
Mais recentemente, O STF consolidou o entendimento de que o § 2º do art. 5º da EC 45/2004 conferiu competência ao CNJ para que, mediante resolução, possa não só disciplinar seu funcionamento, mas “definir as atribuições do Corregedor, enquanto não normatizada a matéria pelo Estatuto da Magistratura” (ADI 4.709-DF, j. 30/5/2022, Dje de 9/6/2022, rel. Min. ROSA WEBER). As atribuições do Corregedor Nacional estão previstas na Resolução 67/2009 (art. 8º).
“Consideram-se títulos digitalizados com padrões técnicos aqueles que forem digitalizados de conformidade com os critérios estabelecidos no art. 5º do Decreto nº 10.278, de 18 de março de 2020”. Tenta-se agora perenizar um procedimento que se originou no contexto da pandemia do COVID-19. Voltaremos ao assunto na parte III deste opúsculo.
[25] X – arquivar qualquer documento por meio de microfilme ou por meio digital, conforme técnica e requisitos estabelecidos em regulamento, hipótese em que se equiparará a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato de direito público;
[26] Sobre os requisitos, cf. Anexos I e II do Decreto 10.278/2020. Confira, ainda, breve digressão sobre tais requisitos tecnológicos: JACOMINO. Sérgio.
Registro em tempos de crise – XI – padrões técnicos para digitalização. SP: Observatório do Registro, 2020. Acesso
Recentemente, o CONARQ editou a Resolução 48, de 10/11/2021 que trata, exatamente, dos requisitos para digitalização segura, indicando requisitos, diretrizes e orientações que devem ser observados.
[27] REsp 1845712 / PR, j. 24/11/2020, Dje 3/12/2020, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE.
[28] O Provimento CN-CNJ 50/2015, de 28/9/2015 (Dje 29/9/2015), baixado pela Min. NANCY ANDRIGHI, estabeleceu uma tabela de temporalidade decalcada da adotada no Estado do Rio de Janeiro.
Entretanto, não é possível estabelecer uma TTDA (tabela temporalidade de documentos arquivísticos) sem que haja, precedentemente, um plano de classificação de documento arquivísticos (PCDA). Volto ao assunto na parte III deste trabalho.
[29] V. JACOMINO. Sérgio. CRUZ. Nataly. Gestão documental no Registro de Imóveis – A reforma da LRP pela Lei 14.382/2022. Revista de Direito Imobiliário, Vol. 93, jul.-dez. 2022, passim. Ainda sobre este importante tema, v. o dossiê CNJ/CONARQ em https://folivm.com.br/conarq/.
[30] A queima de arquivos relativos à escravidão nas chamadas “fogueiras cívicas” – ou “autos-de-fé republicanos”, como diria GILBERTO FREIRE – curiosamente poupou os livros de registro de penhores e hipotecas de escravos.
A Decisão de 14/12/1890 de RUI BARBOSA (Obras completas, Vol. XVII, 1890, tomo II, pp. 338-40) não foi cumprida. Os cartórios, além de suas atribuições clássicas, desempenham um papel relevantíssimo de preservação de documentos de valor histórico e probatório.
[31] Este dispositivo se articula com o conjunto normativo dos artigos 22 a 27 da LRP e art. 46 da Lei 8.935/1994.
[32] CONARQ – Diretrizes Para a Digitalização de Documentos de Arquivo nos Termos do Decreto nº 10.278/2020.
Rio de Janeiro: Câmara Técnica Consultiva do CONARQ sobre a técnica e os requisitos para a digitalização de documentos, 2021, p. 11. Vide ainda a Resolução CONARQ, 31, de 28 de abril de 2010, que dispõe sobre a adoção das Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos Permanentes.
[33] Há inúmeras outras disposições legais que modulam a regras minimalista do art. 194 da LRP – dossiês de retificações de registro, parcelamentos, incorporações, usucapiões, adjudicações etc.
[34] A MP 1.162/2023 atraiu 254 emendas, muitas delas ajustando, melhorando (ou piorando) a redação do conjunto. O mais prudente é aguardar a conversão da medida em lei e voltar ao tema.
Sobre o autor
Sérgio Jacomino, Quinto Oficial de Registro de Imóveis da Capital de São Paulo. Presidente do NEAR – Núcleo de Estudos Avançados do SREI
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