Blockchain e Bitcoin – Parte II: O nascimento do bitcoin
Por Augusto Marcacini
Após um primeiro texto sobre os desafios envolvidos na criação de algo que possa servir como uma moeda digital, passemos a falar do bitcoin. Nesta segunda parte da série, farei um breve relato de como foi o surgimento dessa criptomoeda.
O histórico do nascimento do bitcoin é uma narrativa que bem se encaixaria nas mais mirabolantes ficções do cinema, daquelas que, embora divertidas, não se mostram verossímeis a um juízo mais severo do expectador. Por outro lado, paradoxalmente, a forma como surgiu o bitcoin e como ele se mantém ativo é algo razoavelmente compreensível se levada em conta a dinâmica da moderna sociedade da informação e dos movimentos colaborativos que ela produziu, fenômenos igualmente improváveis e que seriam recebidos com extremo ceticismo se nos fossem descritos como um projeto (ou como enredo de filmes) há vinte ou trinta anos atrás, tais como a enciclopédia aberta Wikipedia, as muitas comunidades de desenvolvimento de software livre, ou os projetos de computação distribuída como o SETI@home (em que voluntários oferecem o poder de processamento de seus computadores para analisar dados colhidos por radiotelescópios, na tentativa de encontrar sinais de vida inteligente no universo), ou o Folding@home (voltado ao combate do câncer, usa o poder de processamento doado para simular e estudar moléculas de proteínas). São cenários improváveis… mas eles existem! Embora criptomoedas possam provir de uma entidade central, oficial ou não, o bitcoin é essencialmente um projeto colaborativo, igualmente anárquico e descentralizado, como o são outros projetos dessa natureza, em que o criador do bitcoin evidentemente se inspirou.
Há, na Internet, listas de discussão ou fóruns públicos sobre os mais diversos assuntos, nos quais qualquer um pode se inscrever e livremente participar. Pois em 1º de novembro de 2008, um sujeito que se apresenta com o nome de Satoshi Nakamoto publica uma mensagem em um desses fóruns, que, no caso, promove discussões sobre criptografia. Bastante sucinto, diz que estava trabalhando em um novo sistema de dinheiro eletrônico que não dependesse de uma terceira parte confiável. No caso, terceira parte confiável significa um agente emissor da moeda, ou gerenciador das transações subsequentes. Faz, ainda, uma breve descrição das características de seu projeto, como a utilização de comunicações em rede ponto a ponto (peer-to-peer), seu método de evitar o duplo gasto do mesmo dinheiro (double-spending) e que os participantes podem permanecer anônimos. O conjunto dessas características, perseguido há tempos, deixa muito claro aos iniciados que não se tratava de uma proposta modesta, nem de fácil obtenção. Na mesma mensagem, é indicado o link para um paper por ele escrito, em que mais destalhes do projeto foram apresentados (e que ainda hoje se encontra disponível em http://www.bitcoin.com/bitcoin.pdf, para quem se interessar em lê-lo).
Como seria esperado, diante do interesse que o dinheiro digital desperta entre os especialistas em criptografia, a mensagem inicial gerou uma intensa discussão com os demais participantes do fórum. Vários questionamentos são feitos e Satoshi Nakamoto os responde cuidadosamente, demonstrando conhecimento e profundidade sobre o tema.
Um dos participantes da lista, Hal Finney, experiente cientista e criptógrafo, que já participara, entre outras atividades, do desenvolvimento do PGP (Pretty Good Privacy, pioneiro software de criptografia criado por Phil Zimmermann e que foi livremente distribuído nos anos 90 como forma de ativismo em defesa da liberdade de comunicação e da privacidade), levanta vários questionamentos ao modelo proposto e chega a afirmar em uma mensagem postada no fórum que o projeto não lhe parecia ser uma ideia promissora, nem original, e que seria útil ver detalhes mais concretos sobre as estruturas de dados, além daquilo que estava descrito no referido paper. Satoshi surpreendentemente lhe responde que, antes de escrever o paper, já havia desenvolvido todos os códigos de programação necessários, porque queria convencer a si mesmo de que seria capaz de resolver cada um dos problemas envolvidos em tal empreitada, e só depois disso produziu o artigo que divulgara dias antes no fórum de discussão. Noutra mensagem seguinte, também respondendo às dúvidas e críticas feitas pelos demais participantes, Satoshi declara que esteve trabalhando por um ano e meio no desenvolvimento do sistema e que, embora o seu paper não apresentasse maiores detalhes sobre como resolver as várias questões ali levantadas, o sistema as solucionava todas e em breve ele publicaria o código-fonte do software que escreveu.
Esse misterioso participante do fórum de discussão, portanto, não trazia à luz uma mera exposição conceitual, ou esboços iniciais ainda incipientes, visando colher colaborações dos demais membros para um futuro desenvolvimento: ele já tinha o sistema pronto.
Satoshi também sugere, em suas mensagens, que o seu modelo proposto de dinheiro digital lhe parecia ter grande utilidade para pagamento de pequenos valores de compras ou serviços online, especialmente acesso de conteúdo.
Comunidades de desenvolvimento de software livre costumam utilizar algum dos diversos serviços online voltados especificamente para o armazenamento e distribuição de código-fonte de programas de computador. Assim, Satoshi disponibilizou o software que desenvolveu na plataforma online sourceforge.net e, em mensagem de 9 de janeiro de 2009, disso comunicou os demais integrantes do fórum. Estava lançada a versão 0.1 do Bitcoin (aos que não o sabem, programadores usam valores menores que um para numerar versões preliminares, de teste, de um software). Satoshi certamente já havia testado bastante essa sua criação nos meses anteriores; mas agora começariam os testes em um ambiente real, aberto a vários participantes estranhos.
Disponibilizado o software, também foi criado, provavelmente pelo próprio Satoshi, o primeiro bloco da blockchain. Esse conceito será comentado nos próximos artigos, mas, em breves palavras, pode-se dizer que a tecnologia por trás de tudo isso consiste em uma cadeia de blocos de dados digitais, nos quais as transações são escrituradas, todos “amarrados” entre si com a utilização de funções criptográficas, daí a necessidade de ter-se um primeiro bloco a partir do qual os demais serão encadeados. Neste primeiro bloco, utilizou-se como informação inicial, para gerar os seus números, a manchete principal da capa do jornal The Times, do dia 03 de janeiro de 2009, que ironicamente falava da ajuda governamental dada aos bancos, que então se encontravam em dificuldades em razão da crise do mercado financeiro iniciada no ano anterior. Possivelmente, quis-se demonstrar que o primeiro bloco não poderia ter sido gerado antes dessa data, sendo evidentemente posterior à manchete.
E, assim, os expertos que participavam daquele canal de discussão instalaram o software e o experimentaram, continuando a debater aspectos técnicos com o seu criador. Novas versões do programa são desenvolvidas e entre esses primeiros usuários são geradas novas unidades da moeda, que entre eles são transacionadas.
Forma-se, enfim, uma comunidade de desenvolvimento do software, nos mesmos moldes em que outros muitos e muitos programas livres são desenvolvidos.
Em 10 de dezembro de 2010, a revista PC World publica uma matéria em que são cruzadas as trajetórias do bitcoin com outro movimento ainda mais polêmico: o Wikileaks, sistema que vazava e publicava online informações sigilosas de governos, normalmente escandalosas. Sugeriu-se, na reportagem, que o Wikileaks estaria recebendo doações anônimas por meio de transferências em bitcoins. No dia seguinte, Satoshi envia mensagem ao fórum dizendo que teria sido bom se o bitcoin tivesse recebido as atenções da imprensa em um outro contexto, pois, nas suas palavras, “o Wikileaks chutou o vespeiro e o enxame veio na nossa direção”. Em 12 de dezembro, Satoshi envia uma última mensagem ao fórum, com conteúdo técnico. Ainda manteve, segundo se sabe, algumas comunicações privadas, por e-mail, com outros participantes. Depois disso, desapareceu.
Simplesmente ninguém sabe até hoje quem é Satoshi Nakamoto, nem mesmo se ele é uma única pessoa ou um grupo de expertos em informática e criptografia, uma vez que a fineza do trabalho que apresentou faz suspeitar que isso não seria tarefa de um só, mas de uma equipe muito experiente nesse ramo, que talvez tenha trabalhado em anteriores projetos semelhantes, mas frustrados, de dinheiro digital. Seja quem for ele, demonstrou habilidade em reunir diversos conceitos matemáticos e computacionais, especialmente de segurança da informação, juntando-os na criação do bitcoin. Suas mensagens ao fórum de criptografia também ilustram um aparente conhecimento sobre as transações financeiras eletrônicas de modo geral e como são realizadas.
Ainda na tentativa de esclarecer o enigma, em 2014 a revista Newsweek localizou na Califórnia um sujeito chamado Dorian Satoshi Nakamoto, abordando-o em sua residência e publicando reportagem que afirmava ser ele o criador do bitcoin, mas as informações posteriormente apuradas levaram a crer que seria apenas um infeliz homônimo que teve sua vida privada repentinamente importunada. Na sequência, o “verdadeiro” criador do bitcoin teria enviado uma breve mensagem para outra lista de discussão da qual participava, a p2pfoundation, dizendo simplesmente que “eu não sou Dorian Nakamoto”. Depois disso, dele não se teve mais nenhuma notícia, nem, que se saiba, enviou qualquer mensagem a algum fórum ou a alguém.
O software, aberto, continua a ser desenvolvido pela comunidade que se formou, a partir do fórum, em torno do projeto. O funcionamento do sistema, uma vez instalado por qualquer um que o deseje, é totalmente descentralizado, de modo que todos os participantes que executam o software são diretamente conectados em uma rede peer-to-peer.
Sinistro como tantas estórias da ficção; colaborativo, descentralizado e anárquico como tantas outras experiências reais que foram produzidas pela moderna sociedade da informação, como, aliás, é o caso da própria Internet. Esse é o bitcoin.
Prosseguirei com mais detalhes técnicos nos próximos episódios desta série.
Sobre Dr. Augusto Marcacini
– Advogado em São Paulo desde 1988, atuante nas áreas civil e empresarial, especialmente contencioso civil, contratos e tecnologia.
– Sócio do escritório Marcacini e Mietto Advogados desde 1992.
– Bacharel (1987), Mestre (1993), Doutor (1999) e Livre-docente (2011) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
– Foi professor no Mestrado em Direito da Sociedade da Informação da UniFMU entre 2011 a 2018, lecionando as disciplinas “Efetividade da Jurisdição na Sociedade da Informação” e “Informatização Processual, Provas Digitais e a Segurança da Informação”.
– Professor de Direito Processual Civil desde 1988, em cursos de graduação e pós-graduação.
– Vice-Presidente da Comissão de Direito Processual Civil, Membro Consultor da Comissão de Informática Jurídica e Membro da Comissão de Ciência e Tecnologia da OAB-SP (triênios: 2013-2015 e 2016-2018)
– Ex-Presidente da Comissão de Informática Jurídica e da Comissão da Sociedade Digital da OAB-SP (triênios 2004-2006, 2007-2009 e 2010-2012) e Ex-Membro da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB (triênio 2004-2006).
– Autor de diversos livros e artigos, destacando-se na área de direito e tecnologia: “O documento eletrônico como meio de prova” (artigo, 1998), “Direito e Informática: uma abordagem jurídica sobre a criptografia” (livro, 2002), “Direito em Bits” (coletânea de artigos em coautoria, 2004), “Processo e Tecnologia: garantias processuais, efetividade e a informatização processual” (livro, 2013) e “Direito e Tecnologia”, (livro, 2014).
– Palestrante e conferencista.
– Colunista e membro do conselho editorial do Crypto ID.
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