Blockchain e Bitcoin – Parte VI: O que é o bitcoin?
Nas três partes anteriores desta série, discorri acerca de detalhes técnicos do, digamos, “funcionamento” do Bitcoin. Após compreendido o fenômeno sob suas características informáticas, vamos passar a discutir, neste e nos próximos textos que se seguem, aspectos sociais, econômicos, políticos e, claro, jurídicos do Bitcoin.
Serão despretensiosos ensaios, em que me permitirei trazer ao leitor algumas reflexões e pensamentos, sempre com o intuito de fomentar o debate, mais do que decretar verdades. No presente texto, arrisco fazer algumas considerações de cunho econômico sobre a criptomoeda, voltadas especialmente para compará-la com outros negócios ou ativos. Para quem não leu o primeiro destes artigos (ou já o esqueceu), reitero a advertência: não é meu objetivo aconselhar, estimular ou sugerir a compra de Bitcoins pelo leitor, nem a aplicar seu patrimônio de qualquer outra forma.
Seguindo adiante, para iniciar esses ensaios, parece interessante especular (sem trocadilhos, por favor!) o que é um Bitcoin.
Se pensarmos em seus aspectos puramente técnicos, como desenvolvi nos três artigos antecedentes, a resposta é muito simples: o Bitcoin é uma escrituração contábil digital, colaborativa e distribuída. Isto é, antes de tudo, ele é um grande “livrão” de contabilidade, com lançamentos de créditos e débitos em múltiplas contas correntes “individuais” (lembrando que cada conta tem como titular uma “chave pública”, e não uma pessoa física ou jurídica). Graças a vários conceitos informáticos, como a criptografia e as redes ponto a ponto, esse “livrão” fica igualmente sob a guarda, em sua completude, de inúmeros participantes anônimos. O sistema informático, então, opera do modo como resumidamente descrito nos três textos anteriores e, assim, permite que seus vários usuários transfiram Bitcoins de um para o outro, registrando-se essas transações na tal contabilidade.
A grosso modo, organizasse eu uma escrituração contábil, em fichas de cartolina ou em um daqueles velhos livros de capa dura, e passasse a anotar créditos e débitos de meus amigos (talvez para controlar um jogo de Banco Imobiliário ou algo assim), não estaria a fazer nada fundamentalmente diverso daquilo que uma grande comunidade, com um pouco mais de tecnologia, está procedendo ao manter o public ledger dos Bitcoins. O que quero dizer com isso é que o Bitcoin é, nada mais, nada menos, que anotações contábeis! Anotações um tanto sofisticadas, sem dúvida, como expliquei nas semanas passadas, mas não é nada mais do que isso, em sua essência. Não há algo que sirva de lastro, não há sequer uma entidade pública ou privada que possa ser considerada responsável por ele. Não há mais nada, enfim, “por trás” da criptomoeda, como pretendo melhor comentar até o final deste texto.
Quero crer que o leitor já compreendeu que isso tem todo o jeito de parecer uma grande maluquice. Talvez seja, talvez não. A moderna sociedade da informação produziu muitas maluquices semelhantes em termos de trabalho colaborativo distribuído, muitas das quais se pode dizer que foram bastante bem sucedidas. A própria Internet é uma delas.
O modo como o Bitcoin nasceu lembra-me muitíssimo a gênesis de uma outra grandiosa atividade colaborativa: o sistema operacional Linux. Tudo começou em 1991, quando Linus Torvalds, um rapaz finlandês de apenas 18 anos, anuncia em uma lista de discussão na Internet que estava desenvolvendo (“como hobby”, disse ele, “mas não seria nada grande”) um sistema operacional livre, semelhante ao padrão Unix. O desenvolvimento de software livre – que não se resume ao sistema operacional Linux, mas certamente ganhou muito impulso a partir dele – é sem sombra de dúvida o maior movimento colaborativo da história da humanidade. É uma atividade altamente improvável! Mas está funcionando em grande escala há mais de duas décadas… Como já afirmei no passado, “são centenas de milhares de programadores escrevendo e compartilhando trechos de programas de computador; ou usuários, sem tantos conhecimentos técnicos, que colaboram nas tarefas de tradução do programa para seu idioma natal; pessoas geograficamente distantes entre si, mas logicamente próximas graças à Internet”.
Pois o Bitcoin, como vimos no primeiro capítulo desta série, nasceu de forma análoga, com o anúncio feito por Satoshi Nakamoto, seu criador, em uma lista de discussão na Internet. Com a evidente diferença de que Linus se tornou uma espécie de popstar do universo geek, enquanto ninguém tem a mínima ideia de quem é, ou foi, Satoshi Nakamoto, se é que ele existe!
Não tome o leitor minhas palavras como um exercício de futurologia qualquer, ou como alguma esotérica aposta determinista. Não tenho a pretensão de dizer, com essa comparação feita com o sistema operacional Linux, que o Bitcoin será igualmente um grande sucesso. Quero apenas externar que me considero razoavelmente acostumado a observar, ou até mesmo a utilizar, algumas dessas maluquices produzidas pela atual sociedade em rede, de modo que o mero fato de ser ou se parecer com uma não é motivo, por si só, para dela duvidar. Pode ser uma loucura que dará certo… ou não. Mas isso só o tempo o dirá. A variável entre o sucesso e o fracasso, arrisco dizer, depende fundamentalmente de se conquistar o apoio voluntário de uma comunidade de participantes, como se dá com qualquer outro desses movimentos colaborativos.
A comparação entre os dois nascimentos também chama a minha atenção pela forma modesta como ambos foram anunciados e criados, e no que a criatura se tornou depois. Linus disse, como vimos, que “não seria nada grande”…
Conforme já narrei no segundo capítulo, um grupo de hackers que participava da lista de discussão sobre criptografia foi a primeira comunidade a utilizar e a “minerar” os Bitcoins, a partir janeiro de 2009, utilizando o software desenvolvido por Satoshi Nakamoto. Nessas pioneiras mensagens trocadas entre os membros da lista, Satoshi é muitíssimo direto na apresentação das questões técnicas envolvidas na empreitada, não se vendo ali qualquer projeção ou planejamento seus sobre os usos específicos a serem dados à sua criação. Como o próprio Satoshi se qualifica em uma das missivas eletrônicas, ele seria mais habilidoso com código de programação do que com palavras. Em parte, tudo parece não passar de um mero desafio nerd: conseguir demonstrar praticamente um modelo de moeda criptográfica, coisa que não fora bem sucedida no passado, após algumas tentativas frustradas de implementação.
Marginalmente, entre explicações técnicas sobre como evitar o “double-spending”, isto é, evitar que se possa tentar passar a mesma moeda adiante por duas (ou mais) vezes, notam-se exemplos que sugerem que Satoshi e os demais participantes vislumbravam um uso do Bitcoin para pagamento de compras ou serviços fornecidos online. A leitura de jornais ou de outro serviço de fornecimento de conteúdo, por exemplo, poderia ser paga com tais criptomoedas. A intenção que exala dessas discussões inaugurais parece ser a de criar uma mera moeda de troco, para com ela efetuar pequenos pagamentos feitos pela rede. Nada ali, naquelas discussões, sugere a pretensão de dar um uso financeiro ao Bitcoin, como forma de aplicação, como um investimento.
Nas redes sociais, ou em conversas informais ao vivo, observa-se todo tipo de comentário sobre o Bitcoin, de que é uma ilusão, tal como as tulipas holandesas do Século XVII, ou uma nova roupagem de mais um “esquema Ponzi” (pirâmide financeira). Se criptomoedas podem ser ou estão sendo usadas por espertalhões para se locupletarem à custa da credulidade dos mais incautos – e não é de se duvidar disso! – tal afirmação não quer dizer que o Bitcoin tenha nascido como mais uma pirâmide qualquer, isto é, com esse propósito específico de engendrar um grande golpe.
Esquemas Ponzi têm características bem peculiares: consistem essencialmente em um “mercado” que só subsiste mediante a constante e crescente entrada de novos participantes, em escala geométrica. Pode ser aquela velha “corrente”, em que a vítima envia R$ 100,00 para o primeiro sujeito de uma lista ordenada de uns cinco nomes, com as instruções de colocar seu próprio nome na base, retirar o do beneficiado, copiar e repassar a relação para mais cinco “amigos”. É fácil convencer um tolo que, em “apenas” cinco passagens, seu nome estará no topo de 3125 listas que estarão circulando por aí, e ele será o feliz ganhador de mais de trezentos mil reais. Eventualmente, a lista pura e simples é encoberta pelo comércio de “produtos”, que o novo empresário precisa primeiramente adquirir para si (comprando-o daquele que o convida para participar do “empreendimento”, ou gerando-lhe comissões), cabendo ao novo participante encontrar outros cinco ou dez interessados no negócio, que lhe paguem pelas bugigangas. Quando, nesse crescimento em escala geométrica, alcançar-se em poucas rodadas mais gente do que a população do planeta, evidentemente os últimos continuarão a ser… os últimos! E ficarão com o mico na mão. Mas, provavelmente, a pirâmide quebra bem antes disso, pois a quantidade de ingênuos não é igual à da população terrestre.
O Bitcoin bem pode estar sendo explorado maliciosamente por alguns escroques, por outras imaginativas formas de iludir outrem, mas ele evidentemente não se confunde com um esquema de pirâmide. Falta-lhe a própria pirâmide hierárquica e organizacional do, digamos, “negócio”.
De tanto se falar sobre investir em Bitcoins – e cansei de receber mailings me convidando para entrar nisso, como creio ter acontecido com todos vocês – muitos parecem compará-lo ao mercado de ações. Ora, ações são cotas do capital social de uma empresa de sociedade anônima, o que faz com que o acionista seja seu sócio. Se a empresa der lucros, distribuirá dividendos a esse acionista. Se der muitos lucros, ou exibir boas expectativas de lucros futuros, a própria ação se valoriza no mercado, gerando um ganho econômico, caso o investidor a revenda por mais do que a comprou.
O Bitcoin não é cota de coisa nenhuma. É, como dito, um mero lançamento contábil!
Também não é um título de crédito, ou um desses produtos do mercado financeiro, como cédulas imobiliárias, ou de crédito rural. Ninguém é devedor dos Bitcoins, ninguém prometeu pagar nada por seu resgate, nem há qualquer lastro em bens móveis ou imóveis, produção industrial ou agrícola, nem mesmo uma garantia fidejussória. Não há sequer um lastro em créditos podres, como o que gerou a crise de 2008… Não tem nada mais ali, somente uma contabilidade!
Para repetir aqui um comentário que já fiz a amigos, nessas discussões de botequim, real ou virtual, quando lia ou ouvia que “essa coisa vai quebrar”, eu costumava responder que não tem como quebrar. Não há o que quebrar. É só uma contabilidade! Espero que o leitor tenha plenamente captado a forte dose de cinismo destas minhas palavras…
O funcionamento do Bitcoin e sua contabilidade o torna semelhante, portanto, a uma moeda. Uma moeda escritural. Há quem resista em considerá-lo como tal. Mas, dentre o que existe no mundo, esse parece ser o conceito mais próximo para encaixá-lo. É a “funcionalidade” que, ao menos, ele foi vocacionado para ter, como desenhado pelo seu idealizador e os seus primeiros usuários.
Portanto, quando se fala no “valor” de um Bitcoin no mercado, está-se tratando de algo semelhante a uma taxa de câmbio, como se estivéssemos convertendo reais em dólares, ou em euros… ou em bolívares venezuelanos. Se uma dessas moedas se valoriza ou desvaloriza no mercado, seu “preço” se altera em relação às demais. É o que tem acontecido com a criptomoeda. Por que isso ocorre é possivelmente um grande enigma… As pessoas estão enxergando algum valor econômico em serem titulares desses registros contábeis high tech., como certamente não o fariam com os meus registros feitos à mão, no livrão de capa dura, das transações do nosso amistoso jogo de Banco Imobiliário. O Bitcoin produziu variações vertiginosas ao longo de 2017, como já assinalei nos capítulos anteriores. Após recuar em aparente queda livre, sua cotação tem se firmado em torno dos trinta mil reais, embora com fortes variações para cima ou para baixo, desde que a primeira parte desta série foi publicada.
*Sobre Dr. Augusto Marcacini
– Advogado em São Paulo desde 1988, atuante nas áreas civil e empresarial, especialmente contencioso civil, contratos e tecnologia.
– Sócio do escritório Marcacini e Mietto Advogados desde 1992.
– Bacharel (1987), Mestre (1993), Doutor (1999) e Livre-docente (2011) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
– Foi professor no Mestrado em Direito da Sociedade da Informação da UniFMU entre 2011 a 2018, lecionando as disciplinas “Efetividade da Jurisdição na Sociedade da Informação” e “Informatização Processual, Provas Digitais e a Segurança da Informação”.
– Professor de Direito Processual Civil desde 1988, em cursos de graduação e pós-graduação.
– Vice-Presidente da Comissão de Direito Processual Civil, Membro Consultor da Comissão de Informática Jurídica e Membro da Comissão de Ciência e Tecnologia da OAB-SP (triênios: 2013-2015 e 2016-2018)
– Ex-Presidente da Comissão de Informática Jurídica e da Comissão da Sociedade Digital da OAB-SP (triênios 2004-2006, 2007-2009 e 2010-2012) e Ex-Membro da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB (triênio 2004-2006).
– Autor de diversos livros e artigos, destacando-se na área de direito e tecnologia: “O documento eletrônico como meio de prova” (artigo, 1998), “Direito e Informática: uma abordagem jurídica sobre a criptografia” (livro, 2002), “Direito em Bits” (coletânea de artigos em coautoria, 2004), “Processo e Tecnologia: garantias processuais, efetividade e a informatização processual” (livro, 2013) e “Direito e Tecnologia”, (livro, 2014).
– Palestrante e conferencista.
– Colunista e membro do conselho editorial do Crypto ID.
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