Blockchain e Bitcoin – Parte VII: Quanto vale um bitcoin (ou por que vale alguma coisa)?
Prosseguindo nesta série de textos sobre blockchain e bitcoin, e de certo modo continuando o ensaio iniciado na minha publicação anterior, arrisco comentar algo sobre o valor do bitcoin. Imagino que nem mesmo alguém com muito mais qualificação na área econômica tenha explicações precisas e indisputáveis sobre essa matéria, de modo que também não pretendo eu que estas minhas linhas sejam lidas como algo além de uma opinião pessoal, aqui lançada com o mero intuito de estimular a reflexão sobre essa intrigante novidade trazida pelas criptomoedas.
Na coluna anterior, encerrei dizendo algo razoavelmente óbvio: o bitcoin não se confunde com títulos do mercado de capitais, pois não é cota de nenhum ativo nem fração do capital de empresa alguma. É uma mera escrituração contábil digital. Seu gênero próximo é mesmo o que seus criadores desejavam que fosse desde o princípio: é uma moeda. Uma moeda escritural.
Ao se falar em moeda, o nosso pensamento normalmente se volta para as moedas estatais hoje conhecidas, especialmente as mais estáveis, deixando uma sensação de que o bitcoin não se encaixa bem nesse molde.
Antes de prosseguirmos, é oportuno lembrar que moeda não é necessariamente algo emitido por Estados soberanos. A história registra momentos em que “bilhetes” variados, emitidos por um ente que se mostrasse confiável perante o grupo social, foram usados como meio de pagamento. O sistema financeiro moderno, de certo modo, também produz moeda, na forma de títulos diversos ou de sua alavancagem sobre os valores efetivamente depositados pelos seus correntistas.
Parece-me fundamental lembrar que as moedas, hoje, nem mais podem ser ditas como mero “papel pintado”, pois a tecnologia está cada vez mais reduzindo o uso de cédulas portáveis. De certo modo, o dinheiro oficial é, também, uma mera escrituração digital, como o bitcoin. E tal como o papel pintado do último século, ou as anotações escriturais eletrônicas dos dias de hoje, a moeda estatal já não tem lastro em qualquer ativo.
A moeda metálica já teve, por assim dizer, um valor intrínseco, quando feita de metais preciosos. Foi o tempo em que valia quanto pesasse. Abrindo um parêntese, tenho particularmente certo desdém pelo valor dos metais ou pedras ditos preciosos. Há, modernamente, uso industrial relevante para ouro ou diamantes, mas, olhando para o passado anterior, o valor desses bens foi algo estritamente subjetivo, como o são, hoje, vários outros artigos de luxo. Ou, se assim podemos dizer, ainda mais subjetivo, já que a subjetividade, em maior ou menor medida, é inerente ao valor de todas as coisas. Por que uma calça jeans com certa etiqueta vale tão mais do que outra? Por que se paga mais caro por um colar de pérolas ou pedras preciosas verdadeiras? Por que alguém compra relógios caros, se qualquer aparelho eletrônico vendido a cinco dólares marca o tempo com idêntica precisão, suficiente para qualquer atividade social e para praticamente todas as atividades profissionais, exceto para aquelas que dependam de frações mínimas de segundo (mas, neste caso, será necessário adquirir um relógio atômico de césio, e não de ouro…)?
Assim, seja lá porque a humanidade viu valor em metais raros e apreciou taças e candelabros de ouro ou prata mais do que os de ferro, vidro ou madeira, até o final do padrão ouro as moedas ou eram feitas de metais preciosos ou tinham ao menos lastro em tais metais. Quando se começou a emitir papel moeda, os Estados asseguravam sua conversibilidade em ouro. O papel pintado era cambiável por certa quantidade do metal, que poderia ser a qualquer momento, ao menos em tese, resgatada pelo portador das cédulas. O papel moeda, nesses termos, era uma nota representativa de uma porção de ouro, depositada nos cofres dos tesouros nacionais.
Por volta do início do século passado, houve um movimento mundial que pôs fim ao padrão ouro. No Brasil, ele se encerrou em 1933, com a determinação legal do curso forçado do “mil réis papel”, não mais conversível em ouro. Desde então, a moeda e seu correspondente valor é fruto puro e simples da confiança e das leis. Mas, se o Estado pode impor, por lei, o curso forçado da moeda, não consegue fazer o mesmo, praticamente falando, com o seu valor de troca. Tabelamentos de preços já mostraram à saciedade sua total falta de efetividade para além do curtíssimo prazo, após o qual a economia se desarranja por completo e bens fixados por baixo desaparecem das prateleiras.
Estabelecido o curso forçado, o dinheiro local de um país se torna algo desejável porque com ele se pode quitar obrigações variadas, até mesmo para fazer pagamentos ao próprio Estado. Pode-se, com ele, pagar pelo trabalho alheio, ou por bens de consumo e o credor não pode se recusar a dar por quitada uma obrigação cujo pagamento lhe é ofertado com a moeda nacional. O Direito tem meios de obrigar o credor a receber nessa moeda e declarar quitada a dívida.
Mas os anos de inflação e as tentativas frustradas de com ela acabar pela mera imposição estatal do valor das coisas são fatos inesquecíveis para a minha geração. Embora o dinheiro sirva como medida do valor das coisas, ele próprio acaba sendo tratado como mais uma mercadoria, que pode se valorizar ou desvalorizar em relação ao restante dos bens e serviços da economia. Não existisse a moeda, numa economia de trocas, o valor relativo de bens certamente oscilaria; em um inverno rigoroso, frutas tropicais escassas poderiam se apreciar em relação a outros bens cuja produção seja insensível ao frio, desde que haja mais gente interessada naquelas do que sua disponibilidade no mercado. Se a moeda pudesse ter um valor absoluto, como medida rígida do valor de todas as demais coisas, ainda assim bens momentaneamente escassos se valorizariam em relação a ela (e ao restante da economia), ou desvalorizariam uma vez se tornassem abundantes. De todo modo, a própria afirmação anterior já é uma grande falácia, pois o valor que se dá a algo não é uma grandeza física como o metro, ou o grama, mas, sim, uma estimação subjetiva do quanto algo é mais ou menos desejável pelo público, ou quanto mais ou menos alguém está disposto a permutar outros bens por ele. Parece que isso se aplica, igualmente, à própria moeda.
Enfim, se o uso da moeda pode ser imposto pelo curso forçado, o mesmo não se pode dizer do seu valor. Não se pretende, aqui, discutir a inflação ou suas causas, tema que nem me sinto habilitado a desenvolver, mas apenas lembrar a visível constatação de que a própria moeda estatal flutua de valor, com mais ou menos intensidade, e, portanto, não existe uma régua capaz de medir o valor “absoluto” de todas as coisas. Em última análise, as coisas (e a própria moeda) valem aquilo que alguém estiver disposto a pagar por elas, num dado momento e em um dado local.
Moedas, segundo os economistas, devem cumprir as seguintes funcionalidades: servir como instrumento de troca, como medida de valor e como reserva de valor. Mas parece claro que as duas últimas propriedades acima são exclusivas de moedas estáveis, já que nas inflações aceleradas a população perde a completamente a referência da medida em dinheiro das demais coisas e o valor do papel moeda guardado embaixo do colchão se deprecia. Talvez fosse o caso de dizer que, no campo das expectativas, uma boa moeda deveria preencher essas três funções. Mas também existem más moedas. Na feroz escalada inflacionária brasileira dos anos 80 e 90, muitos bens eram na prática cotados em dólar porque os cruzeiros ou cruzados que desvalorizavam diariamente já não se prestavam a medir o valor das coisas; e guardar por longos períodos a inflacionada moeda nacional não proporcionaria nenhuma reserva de valor. Enfim, por menos confiável, ou estável, que seja a moeda de um país, o curso forçado imposto pela lei a torna pelo menos, e apenas, um instrumento de troca, que não pode ser recusado dentro das suas fronteiras. E nem por isso deixa de ser considerada moeda.
Quanto a servir de meio de pagamento, nada parece obstar a existência de uma moeda consensual, desde que certo grupo social aceite utilizar essa “coisa” como instrumento para intermediar trocas entre si, servindo como contrapartida pela entrega de bens ou prestação de serviços.
O bitcoin, como moeda não estatal, não dotada do curso forçado imposto pela lei, depende evidentemente de um consenso entre os agentes do mercado acerca da sua aceitação. Nesse sentido, ninguém pode ser compelido a aceitar bitcoins, contra sua vontade, como pagamento de uma obrigação. Mas pode aceitá-lo, se quiser. Se posso trocar um caderno por duas maçãs, posso trocar qualquer desses dois itens por anotações digitais de bitcoins feitas num complexo livro contábil distribuído.
Abrindo mais um parêntese, a moderna sociedade viu nascer bens que poderíamos chamar de exclusivamente digitais, ou virtuais, pois neste caso este segundo adjetivo se encaixa perfeitamente. Refiro-me a coisas inexistentes no “mundo real”, com aplicação ou utilidade restritos ao ambiente informático de que fazem parte. Armas, equipamentos ou outros apetrechos virtuais de jogos eletrônicos, por exemplo, são vendidos pela empresa que os fornece, ou mesmo entre os participantes, caso exista opção de transferi-los de um para o outro. Consta que a empresa que provê o jogo Pokemon Go não habilitou, ao menos até o momento, a transferência dos monstrinhos entre os jogadores porque não deseja vê-los comercializados. Diante da febre que o jogo produziu em pessoas de todas as idades, não é nada improvável que o valor dos bichos mais desejados alcance bons preços no mercado. O valor das coisas, afinal, é o valor que alguém está disposto a pagar por elas…
Quanto, então, alguém estaria disposto a pagar, ou que coisas estaria disposto a permutar, por um bitcoin?
Como sugeri no texto anterior desta série, uma moeda sem lastro, sem curso forçado, sem qualquer coisa ou pessoa que lhe sirva de garantia é algo que mais parece uma grande maluquice; entretanto, a moderna sociedade da informação já produziu algumas maluquices calcadas em atividades distribuídas e colaborativas que se pode dizer bem sucedidas. O único “lastro” do bitcoin, ao que me parece, seria a própria base de usuários que nele confia. Se houver uma comunidade ativa e fiel, disposta a recebê-la e dá-la em pagamento, bem como continuar a manter a escrituração (v. os aspectos técnicos do seu funcionamento, comentados nos primeiros textos desta série), a criptomoeda subsistirá, assim como já vem se mantendo “viva” há quase dez anos, embora sua utilidade prática como meio de pagamento ainda esteja mais no campo das expectativas futuras do que da realidade.
Outra questão, além de se manter viva, é dizer qualquer coisa mais sobre quanto deva ser seu valor relativo. Encerrei o texto anterior com a afirmação de que falar em “valor” do bitcoin é essencialmente falar de sua taxa de câmbio em relação a outras moedas, vez que, insisto, não há lastro nenhum por trás da escrituração digital. Mas a inexistência de lastro não é algo que impressione, pois, em última análise, o dinheiro estatal também não o tem. O valor relativo de uma moeda estatal não decorre da lei, mas da confiança que o mercado nela deposita.
Nesse sentido, há elementos técnicos para justificar uma confiança dos agentes econômicos em usar o bitcoin como instrumento de troca. De certo modo, mais controlado do que a moeda de muitos países, o bitcoin não é “impresso” e lançado no mercado ao sabor da vontade de um governo qualquer. Como se sabe, quando um governo precisa de mais dinheiro, ou ele aumenta impostos, ou capta empréstimos e se endivida para o futuro, ou, então, imprime mais cédulas e com elas paga suas contas, o que é apontado como causa imediata da inflação.
Há previsão, na programação do sistema, de crescimento da “base monetária” de bitcoins em uma proporção constante, definida e previsível, na forma de recompensas que o software atribui àqueles que conseguem fechar cada um dos blocos (v. textos anteriores, sobre aspectos técnicos) e, com isso, colaboram com a manutenção da contabilidade distribuída da moeda. No momento, a cada vez que um novo bloco é acrescentado na blockchain, em um intervalo médio de 10 minutos, o ganhador da “prova de trabalho” recebe 12,5 bitcoins (que podemos representar por BTC 12,5). Essa recompensa, no jargão do sistema, é dita “minerada”, como se, em termos comparativos, mais ouro extraído do subsolo tivesse sido posto no mercado, ou a Casa da Moeda houvesse pintado novas “cédulas”.
Também foi originalmente programado que a base máxima de bitcoins será de 21 milhões de unidades. Quando tal limite for alcançado, o software não mais “minerará” novas moedas, e a recompensa daquele que fechar o bloco contábil será exclusivamente proveniente das taxas pagas por cada uma das transações nele contidas. Interessante notar que a menor fração do bitcoin, denominada satoshi (em homenagem ao seu criador), equivale a BTC 0,00000001. É intrigante que o sistema tenha sido desenhado, em 2008, com tal grau de fracionamento. Teria seu criador a aparentemente delirante expectativa de valorização do bitcoin até um patamar tal em que um único satoshi tivesse significado econômico? Note-se que para um satoshi se equiparar a um centavo de dólar, um bitcoin deveria valer o correspondente a um milhão de dólares, o que soa muitíssimo pretensioso! Mas, retornando à questão original, a matemática e a programação aplicadas ao modelo assegura que a criação de mais moeda não está sujeita à vontade de algum governante guloso, o que a torna um “bem” dotado de uma estável e previsível dose de escassez.
Se disse acima que o valor das coisas é o valor pelo qual alguém está disposto a pagar, a cotação do bitcoin é, portanto, fruto do mais puro experimento de livre mercado. Quem nele vir algum valor, ou uma certa cotação relativa entre as demais moedas, trocará o bitcoin por outros bens ou moedas nessa mesma proporção.
Tentando racionalizar o desejo de quem procuraria bitcoins, parece, porém, que nada razoável sustenta o pico impressionante de sua cotação alcançada no ano passado. O bitcoin seria um ativo desejável, como qualquer outra moeda, na medida em que, com ele, fosse possível adquirir outros bens. O problema dessa afirmação é que, por ora, pouquíssimo uso prático se viu nesse campo negocial, em que o bitcoin seja efetivamente usado como um meio de pagamento. Seu valor, em termos estritamente racionais, parece decorrer de uma expectativa futura de que venha a servir como moeda de troca e, pela estabilidade e confiabilidade que se lhe atribuem os agentes de mercado, sua cotação se fixe, lá nesse futuro, em pelo menos o valor equivalente ao da cotação presente pela qual foi adquirido.
Desde que foi criado, o valor relativo do bitcoin sofreu lenta mas constante apreciação em relação às demais moedas, o que pode ser explicável e até esperado, na medida em que mais pessoas, além daquele círculo nerd original, despertem interesse em negociar a criptomoeda. Entretanto, nada parece justificar altas desenfreadas como a de 2017 que não a típica bolha especulativa: quem compra hoje, por um preço já inacreditável, espera que alguém lhe pague ainda mais no dia de amanhã. Evidentemente, nenhuma riqueza é produzida por uma mera escrituração contábil. Insistindo na comparação que já fiz, não se tratam de cotas de um ativo que renda frutos ou de ações de uma empresa cujos lucros ou patrimônio são crescentes, a justificar a valorização dos correspondentes “papéis”. Parece que quem lucrou com a “valorização” do bitcoin no ano passado, obteve um plus em seu patrimônio à custa de alguém que perdeu o mesmo tanto.
De certo modo, essa flutuação alucinante de sua cotação relativa não é boa para os propósitos iniciais com que o bitcoin foi criado. Como se pode usá-lo como meio de pagamento, se não há como dar preço às coisas na sua unidade de conta? Como comprar e vender geladeiras, aparelhos celulares ou diárias de hotel em bitcoins, se sua cotação é de tal modo instável? Se o desejo racional que o bitcoin poderia despertar em alguém parece ser somente o de servir como meio consensual de pagamento, em um mercado global unido pela Internet, mas se, por outro lado, ninguém compra ou vende nada em bitcoins, por que tê-lo? Seria racional pensar que sua oscilação demasiada deveria depreciá-lo, diante da perda de uso prático que ela acarreta? Se sim, essas forças opostas de mercado conseguirão, no futuro, dar um pouco mais de estabilidade a seu valor relativo aos demais bens, serviços e moedas?
Algum dos leitores se arrisca a responder?
Sobre Dr. Augusto Marcacini
– Advogado em São Paulo desde 1988, atuante nas áreas civil e empresarial, especialmente contencioso civil, contratos e tecnologia.
– Sócio do escritório Marcacini e Mietto Advogados desde 1992.
– Bacharel (1987), Mestre (1993), Doutor (1999) e Livre-docente (2011) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
– Foi professor no Mestrado em Direito da Sociedade da Informação da UniFMU entre 2011 a 2018, lecionando as disciplinas “Efetividade da Jurisdição na Sociedade da Informação” e “Informatização Processual, Provas Digitais e a Segurança da Informação”.
– Professor de Direito Processual Civil desde 1988, em cursos de graduação e pós-graduação.
– Vice-Presidente da Comissão de Direito Processual Civil, Membro Consultor da Comissão de Informática Jurídica e Membro da Comissão de Ciência e Tecnologia da OAB-SP (triênios: 2013-2015 e 2016-2018)
– Ex-Presidente da Comissão de Informática Jurídica e da Comissão da Sociedade Digital da OAB-SP (triênios 2004-2006, 2007-2009 e 2010-2012) e Ex-Membro da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB (triênio 2004-2006).
– Autor de diversos livros e artigos, destacando-se na área de direito e tecnologia: “O documento eletrônico como meio de prova” (artigo, 1998), “Direito e Informática: uma abordagem jurídica sobre a criptografia” (livro, 2002), “Direito em Bits” (coletânea de artigos em coautoria, 2004), “Processo e Tecnologia: garantias processuais, efetividade e a informatização processual” (livro, 2013) e “Direito e Tecnologia”, (livro, 2014).
– Palestrante e conferencista.
– Colunista e membro do conselho editorial do Crypto ID.
Leia outros artigos de Augusto Marcacine.
Você quer acompanhar nosso conteúdo? Então siga nossa página no LinkedIn!