A mídia digital como suporte para documentos é a grande novidade no direito. Depois de séculos de uso do papel na estipulação de contratos, títulos de crédito, ações, documentos de identificação e o próprio papel moeda, vemos tudo isso ser expresso em documentos eletrônicos. “Do papel ao virtual, do físico ao virtual, a desmaterialização do documento!” Bradam juristas, juízes, ministros e outros tantos, em artigos, pareceres e decisões judiciais.
Mas seriam mesmo os documentos eletrônicos “virtuais” em seu sentido etéreo, e não físicos? Essa é a questão que pretendo colocar aqui, pois como veremos, suas consequências são inúmeras.
O fato de um documento eletrônico não ter sido considerado matéria, tem gerado consequências diversas. Desde a inaplicabilidade de delitos até decisões judiciais polêmicas como, por exemplo, a do Ministro Sepúlveda Pertence em 1988 em recurso extraordinário 176.626/SP- STJ.
Nesse caso, em votação unânime da 1ª Turma, foi feita distinção para efeitos tributários entre a venda do software de prateleira, com incidência de ICMS e aquele baixado na web, com incidência de ISS. Este justificado pelo fato de não possuir “corpus mechanicum”; segundo as palavras do próprio ministro. Em maio passado, após dez anos do início da ação, o Supremo decidiu que o Estado do Mato Grosso pode cobrar ICMS sobre softwares, tanto os de prateleira como aqueles baixados. Mas a decisão não foi fundamentada na questão cobrança pela materialidade, mas sim por outros quesitos.
Desde Carnelutti, com sua clássica definição de documento como: “Uma coisa representativa que seja capaz de representar um fato”, até os juristas atuais, sempre se definiu o documento como prova material, obviamente, porque nesses casos eram sempre impressos em papel.
Eis que temos agora os bits e a fantástica revolução causada pelos zeros e uns da linguagem binária. Para descrever essa nova era, o homem a cada dia inventa novas expressões. Ao fim dos anos 80 o cientista norte americano Jaron Lanier, ao desenvolver e desvendar a simulação em ambientes virtuais, fascinado e estupefato declarou: “É a realidade virtual!”. Um enorme oximoro, portanto, pois desde quando se tinha notícia, realidade e virtualidade eram absolutamente contrapostos. Mas a força desta expressão pegou, assim como tantas outras que permeiam nossas vidas digitais. Vide “tempo real”, que criou mais uma denominação temporal, até então marcada somente pelo passado, presente e futuro.
E assim, ao que parece é que se foi criando a ideia de que o ambiente digital é literalmente virtual em seu sentido clássico, onde está em oposição ao real, portanto, etéreo. Algo suscetível de realizar-se, que existe apenas como potencialidade, sendo uma abstração do que existe fisicamente.
O que ocorreu então é que a expressão virtual passou a ter outro sentido, definida como resultado de software, algo que existe apenas no ambiente computacional, como o Second Life, por exemplo. Apesar de que, seu uso acabou generalizando-se para tudo o que é mediado pela web, como amizade e comércio virtual.
Quando falamos, portanto, em um documento eletrônico como um título de crédito, chamando-o de virtual, estamos afirmando que ele é assim designado porque é produto de software ou porque supostamente não é físico?
Um documento eletrônico é composto por ondas eletromagnéticas. Einstein já havia pontuado que: “… matéria e energia são manifestações diferentes de mesma realidade física fundamental, e que podem converter-se, uma em outra, segundo a famosa equação: E = m.c2”. Ainda, de acordo com ele, “energia e massa são basicamente a mesma coisa.”
A física quântica comprovou a teoria de Einstein e vem desde então, de surpresa em surpresa, redefinindo os conceitos de matéria e energia. A luz até então considerada onda passou a ser considerada matéria. Atualmente já é pacífico o entendimento de que a informação que transita de forma eletrônica tem existência física real, e por conseguinte, material. A onda é a característica física do elétron, matéria e onda são manifestações de uma única entidade física chamada energia. Assim, podemos deduzir que bits possuem massa e volume, ambas características da matéria.
Indícios mais óbvios e palpáveis deste fato estão nas nossas contas de conexão de internet, cujo critério de cobrança é por volume de dados. Tarifadas por bytes por segundo, indicam o volume que circula por tempo.
O grande salto na invenção dos computadores foi dado quando Claude Shannon concluiu que: “A informação pode seguir todas as leis matemáticas e físicas criadas para descrever a matéria e agir como matéria física”. A partir deste momento foi possível mensurar e transmitir informação por cadeias de zeros e uns, e assim impor um fluxo físico de matéria que transmite os dados.
O polêmico projeto de lei nº 89, de 2003, cujo relator é o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), equipara dado eletrônico a “coisa” para que a subtração de arquivos digitais seja enquadrada como furto pelo artigo 155 do Código Penal. Assim sendo, subentendeu-se que há uma lacuna legislativa no país para esse tipo de crime, pois supostamente dados não seriam coisa alheia móvel.
Havemos então de concordar que existe uma idéia generalizada de que documentos eletrônicos não são físicos. O que, salvo melhor juízo, não me parece verdade, e assim, dada a importância do tema, carece melhor reflexão.
Angelo Volpi Neto é tabelião em Curitiba, professor e escritor
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Este artigo reflete as opiniões do autor.