Por: Demi Getschko*
Houve um tempo em que a internet era considerada o livre mundo da anonimia, da invisibilidade na ação, do não monitoramento. Lá se podia interagir sob o manto de um pseudônimo e nunca seríamos rastreados. Mas essa concepção da rede é errada.
O primeiro aspecto a considerar é que tudo na internet depende de protocolos. Se visitamos um sítio, nossa intenção de lá entrar é conhecida pelo servidor, que nos dará (ou não) permissão de acesso. E, claro, todos somos identificados pelo nosso número IP, tanto visitantes como visitados. Assim, ao contrário de serviços no mundo tradicional, onde podemos ouvir rádio ou assistir à TV sem que as emissoras apercebam-se disso, um acesso a um emissor de rádio na internet depende de autorização para que nosso IP possa receber o fluxo de dados correspondente e, certamente, esse fato pode ser arquivado para o futuro. Ou seja, uma emissora na internet sabe exatamente que IPs recebem seus dados a cada instante.
Mais que isso, e até para algum conforto adicional, muitas vezes somos “carimbados” pelos sítios que visitamos para sermos reconhecidos em uma eventual volta. Esses “carimbos”, os “cookies”, nos facilitam a vida porque não precisamos voltar a nos identificar a cada passo mas, por outro lado, deixam em nosso sistema marcas que podem durar bastante tempo. Podemos instruir o navegador para que não aceite “cookies”, mas isso pode ser um estorvo grande para a nossa interação.
Somos ‘carimbados’ por site para sermos reconhecidos em uma eventual volta.
Outras ameaças existem: o uso da rede para armazenamento de dados pessoais pode expô-los aos que gerem os serviços. Pode acontecer com o nosso correio eletrônico, com listas de endereços, com redes sociais. A assombrosa capacidade de processamento atual permite ir além: pedaços de informação como palavras que buscamos, números IP usados, horários e sítios que visitamos podem ser agrupados e acumulados, identificando-nos virtualmente. Mesmo que nossa identidade não esteja claramente lá, a individualização da informação levará a que sejamos localizáveis pela tecnologia do “big data”. E com a adição, em breve, de nossos equipamentos caseiros à “internet das coisas”, ainda mais dados, preferências e características pessoais serão coletáveis.
O Marco Civil trata da preservação da privacidade possível, ao restringir a coleta de informações àquelas que são diretamente ligadas à transação em curso. É claro que quando usamos um banco pela rede, tanto o banco como nós mesmos devemos ter certeza de quem é o interlocutor. Idem se compramos algo pela rede, a ser entregue em um endereço físico. Nossa privacidade depende do contexto: ela é diferente numa roda de amigos, numa livraria ou num banco. Mas, certamente, não é assunto da livraria ou do banco saber quais são nossos amigos, da mesma forma que não compete a quem nos transporta ao banco ou à livraria saber o que fomos fazer por lá. O Marco Civil estabelece que as informações coletadas devem ser as que dizem respeito ao dado contexto, que devemos ter sempre o direito de saber quais informações serão coletadas e que podemos, em caso de não concordar em usar o serviço, pedir que nossos dados sejam descartados.
*Demi Getschko é conselheiro do Comitê Gestor da Internet; escreve quinzenalmente.
Fonte: Estadão
Sugestão de publicação: Ricardo Theil
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