Quem está minimamente ligado nas alterações tecnológicas já ouviu falar em blockchain, sem entender muito bem o impacto no campo do Direito e o estatuto de validade jurídica no campo penal
Artigo produzido por: Alexandre Morais da Rosa e Felipe Navas Próspero
Assim, diante do surgimento das novas tecnologias aplicadas ao mundo jurídico com soluções e ferramentas impensáveis surgindo diariamente e bastante distantes das tradicionais, estamos sendo obrigados a repensar a forma como vemos o Direito e sua forma conservadora de lidar com o tema.
Muitas dessas novidades são amplamente estudadas e demonstraram eficácia comprovada para a solução de situações que trazem morosidade em razão da burocratização desnecessária de algumas formas prescritas na lei.
Dentre essas novas tecnologias, ressaltamos aquele que é o objeto de nossa análise e que vem sendo considerado por muitos especialistas como a maior revolução digital desde a criação da world wide web (www): a blockchain.
Entretanto, a fim de contextualizar a importância das novas tecnologias no sistema jurídico brasileiro, algumas considerações iniciais têm de ser feitas.
Nos últimos dez anos, o avanço tecnológico nos mostrou que o meio digital deixou de ser um acessório para se tornar protagonista nas relações humanas, independentemente se entre pessoas físicas, pessoas jurídicas ou entre ambas.
Diversos paradigmas foram quebrados com o surgimento de aplicações que até então se mostravam até certo ponto utópicas.
Está-se falando dos smartphones, com a primeira geração do iPhone e o lançamento do sistema operacional Android, que trouxeram a possibilidade de acesso pleno à internet e a viabilidade para se desenvolver aplicativos como WhatsApp; popularizaram-se as redes sociais e muitos modelos de negócios até então sólidos se viram ultrapassados e deixaram de existir.
É o caso, ainda, das locadoras tradicionais, que foram praticamente extintas com o advento da Netflix; os hotéis que tiveram seu modelo ameaçado pelo Airbnb; os táxis, que hoje possuem fortes concorrentes como Uber e Cabify; e as rádios, que ganharam um player de peso com o surgimento do Spotify.
Sem falar no YouTube, que traz conteúdos diversos e que muitas vezes competem com o próprio sistema tradicional de televisão. Denota-se, portanto, que todos os modelos tradicionais de negócios, até os mais conservadores, como bancos, com o surgimento das fintechs (Nubank; Banco Inter etc.), foram afetados —o que fez com que um banco tradicional como o Bradesco lançasse um produto similar, chamado de banco Next.
Tudo isso se deu, em grande parte, em razão do avanço tecnológico e da evolução exponencial da internet, seu alcance e velocidade.
Entretanto, embora os exemplos acima se detenham à análise parcial da última década, a internet e o avanço tecnológico vêm sendo tratados pela doutrina de forma mais séria desde que a evolução cibernética foi alçada à categoria de direito fundamental de quinta geração, dada a importância das transformações digitais no cotidiano e seu impacto em todas as relações interpessoais.
Neste contexto, vale ressaltar que a Constituição da República dedicou um amplo rol normativo e principiológico para consagrar o desenvolvimento nacional e incentivo às novas tecnologias como norteadores das políticas públicas brasileiras, iniciando pelo inciso II, do artigo 3º do texto constitucional, que traz justamente a garantia do desenvolvimento nacional como objetivo fundamental da nossa República.
Ademais, foi estabelecido um capítulo inteiro que trata da ciência, tecnologia e inovação, reformulado pela Emenda Constitucional 85/2015, a fim de traçar normas que determinam que “o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação” (artigo 218/CF).
A proteção das novas tecnologias da rede mundial de computadores, aliás, reforça-se, ainda, por determinação da Lei 12.965/2014, que estipulou o Marco Civil da Internet, cujo artigo 4º, III, exige do Estado, em sua atividade disciplinadora, o fomento “da inovação” e “difusão de novas tecnologias”. Sob essas premissas é que devemos avaliar a rede blockchain, seus possíveis usos e sua validade no ordenamento jurídico.
A blockchain, “de uma maneira bem simples, pode ser entendido como um banco de dados online, público e descentralizado, criado para tornar a distribuição de informação transparente e confiável, sem precisar de um agente externo e centralizador que valide o processo”.
Trata-se de uma rede dotada de um altíssimo grau de transparência, publicidade, integridade e inviolabilidade, sendo praticamente impossível a alteração de qualquer transação ali registrada.
Detalhando de forma mais precisa os princípios e bases da blockchain, Tapscott e Tapscott argumentam:
Cada Blockchain, como o que usa Bitcoin, é distribuído: ele é executado em computadores fornecidos por voluntários ao redor do mundo; não há nenhuma base de dados central para hackear.
O Blockchain é público: qualquer pessoa pode vê-lo a qualquer momento, pois reside na rede e não dentro de uma única instituição encarregada de operações de auditoria e manutenção de registos.
E é criptografado: ele usa criptografia pesada, envolvendo chaves públicas e privadas (semelhante ao sistema de duas chaves para acessar um caixa forte) para manter a segurança virtual.
Você não precisa se preocupar com os firewalls fracos da Target ou Home Depot (cadeias de varejo dos EUA) ou um funcionário desonesto do Morgan Stanley ou o Governo Federal dos EUA (…) Alguns estudiosos têm argumentado que a invenção da contabilidade de dupla entrada permitiu a ascensão do capitalismo e do Estado-Nação.
Este novo livro-razão digital das transações econômicas pode ser programado para gravar praticamente tudo o que for de valor e importância para a humanidade: certidões de nascimento e de óbito, certidões de casamento, ações e títulos de propriedade, diplomas de ensino, contas financeiras, procedimentos médicos, créditos de seguros, votos, proveniência de alimentos e tudo o mais que possa ser expresso em código.
Diante de uma ferramenta tão revolucionária e poderosa, grandes corporações e instituições governamentais vêm utilizando dessa base de dados, ou “livro razão”, para quebrar o modelo tradicional de armazenamento e distribuição de informações e diversas startups.
Com o surgimento da plataforma Ethereum, em julho de 2015, estão desenvolvendo produtos e soluções que se utilizam da rede blockchain para validação de dados, provas digitais e assinaturas de contratos (smart contracts), uma vez que, após o seu registro, o documento se torna imutável.
Surge, aí, a discussão acerca da sua validade jurídica. Sobre as últimas é que iremos discorrer com mais detalhe.
Como ponto de partida acerca da validade jurídica das ferramentas de coleta e armazenamento de provas digitais utilizando-se da rede blockchain, cumpre registrar que em 24 de agosto de 2001 foi editada a Medida Provisória 2.200-2/2001, que “Institui a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, transforma o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação em autarquia, e dá outras providências”.
Referida medida provisória prevê uma série de requisitos “para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras (Art. 1º)”.
Desta forma, preenchendo-se os requisitos previstos nesta legislação, presumem-se válidos e autênticos os documentos digitais.
No caso das ferramentas que promovem a utilização da blockchain como base de dados para autenticação de documentos, como dito, um “livro razão” descentralizado, transparente, público e totalmente auditável, que, após o registro das informações em sua rede, torna-se imutável o documento ali escrito, entendemos pela plena viabilidade jurídica e validade das provas ali produzidas.
Isso porque o artigo 10 da MP 2.200-2/2001 prevê que outras formas de assinaturas ou provas de autenticidade podem se reputar válidas, ainda que não prescritas na referida MP, o que dá pleno respaldo à utilização da rede para os fins aqui discutidos, vejamos:
Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.
§ 2º O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.
Em conjunto com o dispositivo supra, o Código Civil, em seu artigo 107, estipula que a manifestação das partes, desde que não vedada em lei, deve ser respeitada, o que reforça a validade dos registros bilaterais efetivados pela rede blockchain.
Já no Código de Processo Civil, o artigo 369 prevê que “as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”.
Mais à frente, o diploma processual considera-se autêntico o documento quando “a autoria estiver identificada por qualquer outro meio legal de certificação, inclusive eletrônico, nos termos da lei” (artigo 411, II, CPC). Salienta-se, mais uma vez, para as disposições da Medida Provisória 2.200-2/2001, que já regulamentou o tema.
Desta forma, em sendo a rede blockchain dotada de alto grau de integridade, criptografia avançada, auditabilidade e transparência, sendo que os dados ali inseridos tornam-se imutáveis e à luz da legislação vigente, convergindo com os princípios constitucionais expostos e a legislação infraconstitucional explicitada, não resta dúvida de que as provas documentais geradas no sistema possuem validade jurídica, cabendo sua desqualificação apenas com robusta prova em contrário, da mesma forma como o documento certificado por tabelião ou similar.
E essa lógica modifica substancialmente o que se entende por documentos, os meios de prova, enfim, a lógica analógica do Direito e do processo penal, por exemplo.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
Felipe Navas Próspero é advogado, mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), pós-graduando em Direito Digital e Compliance pela Damásio Educacional e pós-graduado em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). É membro do Grupo de Trabalho em Compliance em Proteção de Dados da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L).
Fonte: ConJur
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