Na minha coluna anterior (se o leitor estiver chegando agora, sugiro que veja os outros dois artigos desta série, aqui e aqui), após considerar que
a assinatura é uma forma de manifestação de vontade, mas não a única, e nem mesmo a única que é juridicamente válida como tal, encerrei comentando que ela contém um “algo mais”, em comparação com outras maneiras de manifestar vontade.
Prosseguindo com o argumento, apresento-lhes logo de início, e sem mais cerimônias, uma definição de assinatura que pode abarcar tanto as assinaturas manuscritas como as digitais:
Assinatura é um sinal identificador, único e exclusivo de alguém, que pode ser vinculado de modo indissociável e exclusivo a um único documento.
Para explicar o significado dessa definição, convém antes de mais nada tecer algumas considerações sobre os documentos. Afinal, assinaturas estão sempre relacionadas a documentos. Documentos são assinados.
Por documento, deve ser entendido o registro de um fato. Documento é um registro que perpetua no tempo a memória do fato, a permitir que, num momento futuro, alguém possa recuperar essa informação e conhecer (ou relembrar) o tal fato. Distingue-se de vestígios materiais (um fóssil de dinossauro, ou as marcas de um pneu no asfalto, por exemplo) por ser, o documento, uma criação intencional da inteligência humana.
Mas os documentos não são necessariamente assinados. Um papel (ou arquivo de computador) apócrifo também é um documento, que, igualmente, permite preservar uma informação para o futuro.
Documento, enfim, é apenas isso: um registro, sendo dispensável atribuir-lhe qualquer outro qualificativo. Neste sentido, qualquer registro é um documento, o que, evidentemente, não significa dizer que tais documentos sempre representem a verdade.
Em vários aspectos da vida em sociedade, é necessário que possamos confiar na mensagem trazida pelos documentos, e isso é especialmente importante quando documentos são usados com propósitos jurídicos ou negociais. Um documento, como até mesmo os leigos em ciências jurídicas devem saber, pode demonstrar a existência de direitos e obrigações entre duas ou mais pessoas. Mas é claro que, antes disso, é preciso acreditar na veracidade do próprio documento!
E que razões temos para acreditar em um documento?
Essa é uma questão muito menos jurídica e, sim, puramente lógica e racional. Os Códigos de Processo Civil (tanto o velho como o novo) dedicam mais de uma centena de artigos para o trato da prova dos fatos, mas a verdade no caso concreto não é o que decorre de um texto legal: verdade é o fato tal como ocorreu, não importa o que diga a lei.
Abrindo um pequeno parêntese, muitos perguntam se um documento eletrônico feito assim ou assado pode ter “validade jurídica”. “Validade jurídica de documentos” é uma associação de palavras absolutamente sem sentido que aparentemente nasceu do texto de uma Media Provisória mal escrita a não mais poder (refiro-me à MP 2.200/2001). Documentos são simplesmente verdadeiros ou falsos,qualidades que podem se referir ao conteúdo do documento ou à veracidade de sua própria existência. Válido, ou não, é o ato jurídico (o contrato, o casamento, etc.), conforme preencha outros requisitos propriamente jurídicos (capacidade das partes, forma prescrita ou não defesa em lei, objeto lícito, entre outros requisitos específicos conforme a natureza do ato).
E como dito na minha coluna anterior, muitos e muitos atos jurídicos podem ser válidos sem que exista qualquer documento que se relacione a eles.
Documentos, nesse contexto, servem para registrar, para provar para a posteridade, que algo aconteceu. Se esse algo é válido, essa é uma questão a ser posteriormente analisada, agora sim, aplicando as regras do Direito. Mas a questão antecedente, isto é, se o fato documentado (ou o próprio documento em si) é verdadeiro ou não, isso não é uma questão propriamente jurídica, mas puramente lógica e racional.
Reiterando, então, a pergunta: e o que nos leva a acreditar que um documento é falso ou verdadeiro?
Há um tradição jurídico-cultural (que também conta com forte apelo lógico e científico) em atribuir à assinatura de alguém o significado de aceitação desta pessoa quanto aos dizeres do documento assinado. Sendo o documento resultante da inteligência humana, tudo o que um documento pode realmente provar é que alguém afirmou ou concordou com o que nele está registrado (há uma distinção conceitual importante entre documentos diretos e indiretos, que, para não alongar este texto, deixo por ora de desenvolver, esclarecendo apenas que me refiro aqui aos indiretos, que abarcam toda sorte de contratos e demais documentos escritos e configuram o foco de toda essa nossa discussão).
É neste contexto que se destaca a importância da assinatura. Ela nos permite desenvolver o seguinte encadeamento de ideias:
- a)sea assinatura é verdadeira (e isso já é um problema preliminar!), pode-se identificar quem é o sujeito que manifesta a vontade;
- b)seo documento assinado se mantém íntegro, não foi adulterado após a assinatura, acredita-se que o conteúdo do documento represente aquilo que o signatário quis afirmar;
- c) admitidos que “a” e “b” sãoverdadeiros,se os direitos e obrigações definidos no conteúdo do documento estão de acordo com o Direito, agora sim, o ato é válido.
Só se analisa a validade daquilo que é verdadeiro. O que é falso nem existe, portanto não se discute se é válido ou inválido.
Documentos não assinados não são provas absolutamente imprestáveis, mas dificultam sobremaneira a solução das questões postas nas letras “a” e “b”, acima, que precisarão ser investigadas por outros elementos de convicção, isto se eles existirem no caso concreto sob análise.
Como um comentário marginal, mas oportuno, esclareço que aceitar como verdades os pontos “a” e “b”, não significa em si que o fato documentado seja verdadeiro, mas tão somente que o signatário o tem como verdadeiro.
Uma assinatura em um documento, com todas as suas impefeições, é uma forma lógica e racional de compreensão da verdade sobre os fatos das letras “a” e “b”. Mas, para isso, a assinatura deve ser algo que também permita o estabelecimento de uma relação lógica e racional entre o sujeito e o documento.
Como afirmei na primeira parte desta série, o vocábulo “assinatura” assume diversos significados, em variados campos do conhecimento. Não devemos, porém, confundi-los com o significado que lhe deve ser dado na esfera jurídico-documental, que deve representar algo que estabeleça essa referida relação lógica e racional entre um sujeito e um documento. Repito, então, a definição inicial:
Assinatura é um sinal identificador, único e exclusivo de alguém, que pode ser vinculado de modo indissociável e exclusivo a um único documento.
Explicarei em detalhes esse conceito na próxima coluna.
Até lá!
Sobre Dr. Augusto Marcacini
- Advogado em São Paulo desde 1988, atuante nas áreas civil e empresarial, especialmente contencioso civil, contratos e tecnologia.
- Sócio do escritório Marcacini e Mietto Advogados desde 1992.
- Bacharel (1987), Mestre (1993), Doutor (1999) e Livre-docente (2011) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
- Professor no Mestrado em Direito da Sociedade da Informação da UniFMU desde 2011, lecionando a disciplina “Informatização Processual, Provas Digitais e a Segurança da Informação”.
- Professor de Direito Processual Civil desde 1988, em cursos de graduação e pós-graduação.
- Vice-Presidente da Comissão de Direito Processual Civil, Membro Consultor da Comissão de Informática Jurídica e Membro da Comissão de Ciência e Tecnologia da OAB-SP (triênio atual: 2013-2015)
- Ex-Presidente da Comissão de Informática Jurídica e da Comissão da Sociedade Digital da OAB-SP (triênios 2004-2006, 2007-2009 e 2010-2012) e Ex-Membro da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB (triênio 2004-2006).
- Autor de diversos livros e artigos, destacando-se na área de direito e tecnologia: “O documento eletrônico como meio de prova” (artigo, 1998), “Direito e Informática: uma abordagem jurídica sobre a criptografia” (livro, 2002), “Direito em Bits” (coletânea de artigos em coautoria, 2004), “Processo e Tecnologia: garantias processuais, efetividade e a informatização processual” (livro, 2013) e “Direito e Tecnologia”, (livro, 2014).
- Palestrante e conferencista.
- Colunista e membro do conselho editorial do Instituto CryptoID.