O povo venezuelano está usando bitcoin, uma criptomoeda cuja natureza não se confunde com o “Petro”– moeda eletrônica lançada por Maduro
Por Tatiana Revoredo
Na terça-feira, o economista venezuelano Sr. Carlos Hernández foi comprar leite. E o que para muitos cidadãos de outros países é algo simples e rotineiro, para o Sr. Hernández é uma dificuldade imensa devido à crônica escassez de alimentos na Venezuela.
Há, contudo, uma etapa extra: ele não possui bolívares, a moeda oficial de seu país. Ele mantém todo o dinheiro em Bitcoin, pois mantê-lo em bolívares seria suicídio financeiro devido à inflação venezuelana.
A taxa de inflação anual fechou 2018 em 1.698.844,2%, segundo a Assembleia Nacional, controlada pela oposição. E o FMI – Fundo Monetário Internacional projeta que a inflação na Venezuela chegará a 10.000.000% em 2019.
E em artigo publicado no The New York Times, o Sr. Hernández relata não ter uma conta bancária no exterior, eis que com os controles de moeda da Venezuela, não é fácil usar uma moeda estrangeira convencional, como dólares americanos.
Devido à crise política e uma economia em frangalhos – a economia contraiu cerca de 18% em 2018, seu quinto ano de recessão -, os venezuelanos passam fome, com violentos impasses sobre a ajuda humanitária se acumulando nas fronteiras com a Colômbia e o Brasil.
Pois bem, antes que o Sr. Hernández possa comprar leite, ele precisa converter Bitcoins em bolívares por meio de uma corretora de criptomoedas, que atua como intermediária entre quem deseja comprar e quem deseja vender bitcoins. Para isto, ele olha no site da referida corretora, procurando por compradores de bitcoins com o mesmo banco dele – assim a transferência bancária ocorrerá imediatamente.
Após aceitar a oferta, os bitcoins são deduzidos de sua carteira digital e mantidos em depósito pelo site. O Sr. Hernández envia as informações bancárias para o comprador e espera o comprador enviar os bolívares por transferência bancária. Só então os Bitcoins, sob custódia da corretora, são transferidos para a carteira do comprador do bitcoin. Ao final, tanto o comprador como o vendedor pontuam o comportamento um do outro no site da corretora. Todo o processo leva cerca de 10 minutos.
Apesar de muitos pensarem ser essa uma situação rara, uma exceção, a verdade é que o Sr. Hernández não é o único venezuelano que usa criptomoedas. Em países onde a credibilidade do governo está em franca decadência, como no caso da Venezuela, um número cada vez maior de pessoas está disposto a usar bitcoin como “reserva de valor” – ou seja, para se proteger de crises econômicas e dos efeitos danosos da inflação.
Aqui, importante ressaltar que o povo venezuelano está usando bitcoin, uma criptomoeda cuja natureza não se confunde com o “Petro”– moeda eletrônica lançada por Maduro e “supostamente” lastreada em petróleo.
As criptomoedas são emitidas e garantidas por algoritmos criptográficos – por matemática e criptografia –, têm natureza privada, são descentralizadas e executadas via blockchain. É um dinheiro sem fronteiras, não emitido por Estado algum, mas com valor intrínseco.
Segundo a Coin Dance, site que monitora transações de criptomoedas, as pessoas na Venezuela negociaram cerca de US $ 6,9 milhões na LocalBitcoins.com na segunda semana de fevereiro de 2019.
Como o governo venezuelano não monitora transações de criptomoedas (ainda), mas monitora transações em bolívares – e qualquer valor de cerca de US $ 50 ou mais congelará automaticamente sua conta até que você possa explicar ao seu banco de onde vêm os fundos.
O Sr. Hernández não pode trocar muitos Bitcoins por bolívares de uma só vez. Trocou cerca de 5 dólares, e saiu para comprar leite. Ele foi a cada uma das padarias que resistiram economicamente ao desabastecimento. Nenhuma das 20 tinha leite. Mas ele precisou comprar algo, qualquer coisa, antes que seus bolívares perdessem valor.
Num contexto de hiperinflação – em que todos estão constantemente ficando mais pobres, ganhando uma miséria e muitas vezes gastando dinheiro para trabalhar –, a primeira criptomoeda tem sido tábua de salvação para muitos venezuelanos.
Afinal, um dinheiro sem fronteiras é “ouro” quando se vive em uma economia e uma ditadura em colapso.
* Tatiana Revoredo, é Membro-Fundadora da Oxford Blockchain Foundation, especialista em Blockchain pela Universidade de Oxford e pelo MIT. Co-autora do livro “Criptomoedas no Cenário Internacional”.