Em um mundo onde o ser passou a significar consumir, poderia o hacking escapar à comoditização e à lógica de mercado?
Por Anderson Ramos*
Sempre tive a sensação que as discussões em torno do que é ou não hacking / hacker raramente produzem algo de relevante.
Mas ao longo dos anos caguei duas regrinhas pra mim mesmo. Evito generalizações muito grandes (panificador hacker), sob risco de certa essência se esvair no ruído. E evito coisas tipo fulano de tal em 1345 era hacker, pra evitar relativismos inócuos. Não consigo ver nada muito útil saindo de uma comparação do Mozart com o Ilfak Guilfanov.
Houve uma época em que ninguém se auto-intitulava hacker, como ninguém se auto-intitula gênio esperando respeito, e o Eric S. Raymond registrou isso pra que nunca fosse perdido. Eu gostava dessa época, mas gera essas discussões sobre quem é ou não, e elas tem um cheirinho fétido de testosterona.
Eu tenho uma visão utilitária da ética, acho que ela é uma necessidade, pensada de maneira meticulosa e coletiva, fruto de um contexto, e o hacking enquanto ética nasceu de um contexto muito claro: pessoas reunidas em torno de tecnologia da informação. Nasceu coletivo em contraponto combativo ao individual, duas ideias que parecem estar dialeticamente amarradas ao infinito e permeiam tudo que a gente conhece.
E porque a história contada é a mídia de armazenamento humana fundamental, o registro histórico é o TRMC do MIT.
Agora o espírito certamente transcende tudo isso, é atemporal.
Quando eu vejo uma criança imersa, desmontando algo pela primeira vez, eu vejo a essência desse espírito, esse desconforto em não compreender, que não é saciado com a compreensão, porque no fundo ele não pode (nem deve) ser saciado.
Vira arte, vira uma necessidade de compreender ao limite só pra poder alterar, melhorar e compartilhar, porque se o espírito é maior que nós, ele não tem dono e não (deveria) ter ego.
Hoje é raro, mas houve uma época em que zero days eram compartilhados na full disclosure de maneira anônima e eu ficava intrigado, pensando se aquilo era realmente alguém compartilhando gratuitamente um trabalho de centenas de horas desapegado do crédito, ou se era informação velha que já tinha sido vendida por uma baita grana e chegava ali de forma tardia.
O capitalismo parece não ter fronteiras, fruto de bilhões de decisões coletivas que fazemos e que ao mesmo tempo nos influenciam, e criam distorções que por vezes nos oprimem, e sem querer a gente tá ali usando dinheiro como a régua fundamental pra tudo, mesmo quando a gente não acredita nisso. Talvez porque no fundo nosso mundo sempre foi um lugar onde o que impera é a opressão do fraco pelo forte, e o dinheiro compra a força.
E talvez seja por isso que o hacking só virou mainstream quando ele passou a ser associado com a força, no começo dos anos 80, quando a molecada começou a invadir geral, pelo desafio, pela trolagem, pra ter voz. Foi quando hacking passou a ser nerdice transformada em poder de fato.
Mas não é qualquer tipo de poder.
É aquele poder assimétrico, Davi vs. Golias, Snowden vs. NSA, guerrilheiros, kamikazes… Esse poder sempre esteve carregado de fascínio e simbolismo. Talvez a gente se apaixone fácil pela ideia de que o indivíduo tem força suficiente frente as maiores estruturas de poder conhecidas. Ou mais, talvez muita gente precise acreditar nessa ideia: fé pura e simples.
Num mundo onde pra muitos o ser passou a ser consumir, não vejo como o hacking poderia escapar à comoditização e à lógica de mercado.
Acredito que uma das questões fundamentais é justamente que commodity é essa. A Keren Elazari observou de maneira perspicaz numa excelente TED Talk que, pra muita gente, principalmente adolescentes marginalizados no convívio social por acreditarem que o intelecto vale mais que a beleza ou a força, essa commodity é o empoderamento. Justamente essa necessidade de potência do indivíduo frente à coerção, muitas vezes brutal, da multidão: esse monstro sem rosto e coração.
Pra fazer uma analogia simplista, quando o punk surgiu, pra muita gente era uma ideologia irascível, indomável e incorruptível. Anos depois, pra tantos outros, virou estética que se compra na fast fashion.
Isso significa que o punk morreu? Acredito que signifique apenas que o espírito não morreu, e que a única coisa gentrificada foram elementos difusos estéticos e de estilo de vida. Se hospedar no Hard Rock Casino em Las Vegas virou uma atitude “punk rock”.
Hacking é poder, e há grandes chances que passe a ser o poder predominante nesse caminho rumo a singularidade. Até o sistema financeiro, que parecia a fronteira final do mundo capitalista, está sendo tomado de assalto pelo bitcoin, e essa é apenas a ponta do iceberg do que a revolução do blockchain ainda vai causar.
Em resumo, não acho que o hacking vai ser gentrificado, mas a partir do momento que hacking é poder, haverá uma comoditização massiva dos seus subprodutos e símbolos. Já está acontecendo faz tempo inclusive.
Mas o espírito vai continuar lá, vivinho vivinho na sua essência: irascível, indomável e incorruptível.
* Anderson Ramos
Idealizador do Roadsec, Mind The Sec e Sacicon e fundador da Flipside, maior organizadora de eventos sobre hacking, segurança e tecnologia da América Latina