Por Doutora Sara Capucho Tonon
No atual estágio do desenvolvimento tecnológico, que em poucas décadas emprestou uma fluidez às relações interpessoais antes não vista em séculos, ainda predomina a idéia de que documento é coisa.
O conceito clássico de documento como coisa encontrou ampla aceitação em virtude de que a única maneira conhecida de o homem representar, registrar e conservar um fato era sobre um suporte físico.
Com efeito, ao pensar, hoje, em documento, somos imediatamente remetidos à imagem de uma folha de papel escrita.
Contudo, antes da invenção do papel – cuja utilização e adoção, nos primórdios, encontraram, na Europa, sensível resistência – a expressão e a comunicação tomaram forma em pedra, argila, folhas de palmeira, ossos de animais, conchas, cascos, madeira, papiro e pergaminho.
O papel passou a ser empregado como meio preferencial pela facilidade que emprestava na troca de informações.
Não obstante, a necessidade de uma comunicação cada vez mais ágil e veloz, intensificada nos períodos das grandes guerras, levou o homem a desenvolver novas técnicas e tecnologias capazes de transportar mensagens e armazenar dados de forma segura.
O telefone, o rádio, a televisão e, enfim, o computador, incrementaram as relações interpessoais, impingindo-lhe mudanças de ordem quantitativa e qualitativa, substituindo, em muitos aspectos, o papel.
Nesse contexto, o conceito de documento teve de passar por uma interpretação que assegurasse a sua razão de existir.
O termo documento provém do latim docere, que significa ensinar, mostrar, demonstrar, indicar.
A etimologia da palavra nos aponta que a característica de um documento está em servir de base de conhecimento, possibilitando o registro de algo a ser futuramente observado; de mostrar, para o futuro, um fato ou pensamento presente.
Nessa linha, documento é o registro de um fato por obra da atividade humana.
Com a evolução tecnológica, tornou-se possível, por meio do computador, interligado ou não à rede mundial, o registro inalterável de dados e fatos.
Pode-se, portanto, afirmar que esse registro é um documento eletrônico.
O documento, assim, pode ser tanto físico, quando estiver representado em uma coisa, quanto pode ser eletrônico, quando não se prender a um meio físico determinado.
Tanto um documento físico pode se tornar eletrônico por meio da digitalização, quanto um documento eletrônico pode se materializar num impresso.
A impressão de um documento eletrônico nada mais é do que o processo inverso ao da digitalização de um documento físico. É possível sustentar que não há óbice, no atual ordenamento jurídico, ao reconhecimento do documento eletrônico como título executivo extrajudicial.
A norma do artigo 585 do Código de Processo Civil, prevê, em seu inciso II, ser título executivo extrajudicial o documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas.
Assim, o contrato que não corresponder a algum tipo legal específico, pode ensejar a execução nos moldes do art. 585, II, CPC, desde que contenha a assinatura do devedor e de duas testemunhas.
Não nos olvidemos que qualquer negócio jurídico, para ser válido, requer: I agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do Código Civil).
Os conceitos clássicos informam-nos que contrato é negócio jurídico, consistente em acordo de duas ou mais vontades, destinado a criar, alterar ou extinguir direitos e deveres de conteúdo patrimonial.
Nessa esteira, existente o acordo livre de vontades com o fim de criar, modificar ou extinguir direitos e deveres de cunho patrimonial, celebrado por pessoas capazes, envolvendo objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e que observe a forma legalmente prescrita ou não vedada, é possível afirmar que estão resguardados requisitos mínimos de validade de um negócio jurídico, em função do que todo contrato, entabulado nesses moldes, estaria apto a produzir efeitos.
O contrato eletrônico reúne condições para satisfazer todos os elementos acima delineados, mormente considerando que os atos jurídicos não dependem de forma especial senão quando a lei expressamente o exigir, e, estando assinado pelo devedor e por duas testemunhas, pode ensejar a execução forçada para satisfação dos direitos do credor (artigo 580, CPC).
Nesse ponto, merece destaque que não só a doutrina, como a quase unanimidade da jurisprudência, inclusive dos Tribunais Superiores, reconhecem que a cópia digitalizada do título executivo é suficiente para embasar uma execução.
Fazem-no com fundamento na norma do art. 365, VI, do Código de Processo Civil, que estabelece que fazem a mesma prova que os originais “as reproduções digitalizadas de qualquer documento, público ou particular, quando juntados aos autos pelos órgãos da Justiça e seus auxiliares, pelo Ministério Público e seus auxiliares, pelas procuradorias, pelas repartições públicas em geral e por advogados públicos ou privados, 3 ressalvada a alegação motivada e fundamentada de adulteração antes ou durante o processo de digitalização”.
O citado dispositivo foi introduzido pela Lei 11.419/06, que disciplinou a informatização do processo judicial e considera meio eletrônico qualquer forma de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais (art. 1º, §2º, I).
As alterações introduzidas pela Lei de Informatizaçao do Processo Judicial já tiveram aplicação prática, com a instituição efetiva do processo eletrônico no Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, na Justiça Federal, em Varas e Juizados Especiais de Tribunais de Justiça de diversos estados federados, nos quais os atos e peças processuais são validados, ante a inexistência de autos físicos, por assinatura digital.
Essa mesma lei que possibilitou a criação do processo eletrônico e que dispôs sobre a validade das cópias digitalizadas de documentos, e que vem sendo invocada pelos tribunais pátrios para viabilizar o processo de execução instruída com cópia digitalizada do título executivo – ao menos dos não cambiais, por não terem circulação – inseriu o inciso V do art. 365, que considera que fazem a mesma prova dos originais os extratos digitais de bancos de dados, públicos e privados, desde que atestado pelo seu emitente, sob as penas da lei, que as informações conferem com o que consta na origem.
Não restam dúvidas, portanto, que não só não há óbice legal à instrução da execução com o extrato digital do banco de dados privado, como há inequívoca e expressa previsão na lei processual a sustentar a possibilidade de um contrato eletrônico, desde que assinado pelo devedor e por duas testemunhas, ser considerado título executivo apto a embasar uma demanda executiva.
Robustecem essa idéia as disposições do Código Civil atinentes aos títulos de créditos, ao utilizar as expressões documento e escrito (arts. 887 e 888), sem restringir sua compreensão a papel.
Além disso, o próprio Código esclarece, em seu art. 889, §3º, que o título poderá ser emitido a partir de caracteres criados em computador.
A Medida Provisória 2.200-2/2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, cuidou de garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.
Nessa linha, os documentos eletrônicos que obedeçam aos critérios de segurança estabelecidos na MP 2.200-2/2001 são considerados documentos particulares, razão pela qual constituem, potencialmente, títulos executivos extrajudiciais.
Basta, como já dito, que venha assinado pelo devedor e por duas testemunhas. Nesse aspecto, é de se imaginar que a cópia física do documento eletrônico não conterá nenhuma assinatura, tal como ordinariamente é conhecida.
A assinatura do documento eletrônico se dará, também, por meio eletrônico. A sua conferência, do mesmo modo, será possível somente através do computador.
Atualmente, reputa-se válida a assinatura eletrônica consistente em assinatura digital baseada em certificado digital emitido por Autoridade Certificadora credenciada pelo ICP-Brasil, na forma do que estabelece a MP 2.200-2/2001. É o que, aliás, expressamente estabelece a Lei de Informatização do Processo Judicial em seu artigo 1º, §2º, III, a.
O certificado digital equivale a uma carteira de identidade, contendo todos os dados do seu titular, e confere a mesma validade jurídica ao documento eletrônico daquele em papel assinado de próprio punho.
Frise-se que a única maneira reconhecidamente segura, no atual estágio tecnológico, para assinar documentos eletrônicos e mantê-los inalterados é por meio de processos criptográficos de chave pública. O sistema se vale de duas chaves, uma pública e outra privada.
O aceitante, usando a sua chave privada, assina o documento eletrônico, enviando-o ao proponente. Nesse momento, é possível reputar-se formado o contrato, eis que se completa a manifestação de vontade no meio eletrônico, garantindo-se a autenticidade do documento e a identificação do emitente da vontade.
É esse o critério adotado na Lei 11.419/06, consoante se extrai da norma do artigo 3º.
De todo modo, estando assinado digitalmente, com sistema criptográfico que permita a verificação da autenticidade do conteúdo e a identificação da autoria do assinante, é possível comprovar a contratação. Esse documento, ainda que não se preste a configurar título executivo, seria suficiente, em tese, para instruir eventual ação monitória, razão pela qual a obtenção do crédito, embora de maneira não tão eficaz, não restaria inviabilizada.
Como visto, embora haja robusto substrato jurídico e legal para a admissão de uma ação executiva instruída com um documento eletrônico, o desconhecimento ou a falta de familiaridade com a matéria por grande parte dos magistrados configuram, ao menos até o atual momento, sérios obstáculos ao seu reconhecimento como título executivo extrajudicial.
Por isso, não se espera que, na atualidade, a maioria deles se posicione na vanguarda e admita, sem o específico respaldo legislativo, o documento eletrônico como título executivo. Estariam aptos a fazê-lo somente aqueles que dominem minimamente a linguagem e as ferramentas eletrônicas ao ponto de se sentirem suficientemente seguros para quebrar esse tabu.
Num futuro não distante, popularizando-se os conceitos do meio eletrônico, e permitindo-se aos cidadãos comuns amplo acesso e conhecimento das ferramentas e da linguagem peculiar, esses impasses certamente serão removidos, cedendo espaço para mais este facilitador das negociações.
Fonte: Portal Ferreira e Chagas Advogados
http://www.ferreiraechagas.com.br/
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