Aberta a discussão de criação do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (Sinter) junto à Comissão de Juristas da Desburocratização – CJD, encarregada pelo Senado Federal de propor medidas para a desburocratização do país, é necessária a análise crítica da ideia de formar uma base de dados dos imóveis rurais e urbanos de todo o país.
O sistema, como relatado na proposta formulada pela Receita Federal à Comissão de Desburocratização, seria composto de um banco de dados integrado e multifuncional, que além de informações de registro, repassadas por cartórios, contaria também com dados fiscais, cadastrais georreferenciados.
O objetivo seria o de contribuir para agilizar o acesso de órgãos públicos, sobretudo da Receita Federal e do Judiciário, a informações sobre imóveis.
Há crítica no sentido de que os cadastros de imóveis rurais e urbanos são totalmente separados no Brasil, sendo que somente a União tem mais de 20 bases de dados sobre imóveis rurais que não se comunicam entre si, e de que alguns dos principais problemas que resultam desse modelo fragmentado de registro de imóveis são a falta de segurança jurídica na regularização fundiária, o impedimento ao combate eficiente à corrupção e à lavagem de dinheiro, e dificuldades na cobrança de créditos tributários por parte da Receita Federal.
A questão que se coloca à Comissão de Desburocratização é a de identificar até que ponto a implementação da proposta do Governo Federal realmente contribuiria para o aprimoramento da gestão territorial do país.
- Sistemas de registro de imóveis.
Situações jurídicas existem que, por interesse social ou privado, devem ser conhecidas por todos, especialmente quando devam ser respeitadas por terceiros ou frente a estes produzam efeitos.
Para esse fim são adotados, pelo Estado, sistemas, órgãos ou modelos destinados a viabilizar, de forma segura, acessível e permanente, a exteriorização de fatos, atos, direitos e situações jurídicas para os quais imponha o Direito a imperatividade ou a conveniência de que sejam tornados públicos, ou seja, de conhecimento geral e oponíveis erga omnes.
Os registros públicos atuam na recepção, conservação, organização e informação de tais fatos, direitos e situações jurídicas. O registro é imposto e obrigatório sempre que destinado a proteger e assegurar interesse público ou social, como nas relações pertinentes ao registro civil e aos direitos reais. É facultativo quanto prepondera o interesse privado, como na conservação de um documento particular.
Obrigatório ou facultativo o registro, adverte Miguel Maria de Serpa Lopes, a publicidade dele decorrente, será “um corolário necessário, atributo lógico do Registro”, pois “há sempre uma publicidade, embora com efeitos de intensidade variável”.
Os efeitos do registro e da publicidade registral podem ser constitutivos, declaratórios, saneadores, comprobatórios ou conservatórios, dadas sua necessidade ou não e as previsões específicas para cada caso ou sistema jurídico. Basta, no entanto, para os fins desta exposição, a referência a essa multiplicidade de efeitos, pois o que nos interessa é que os registros públicos existem e atuam, essencialmente, em função da publicidade de fatos, direitos e relações jurídicas tidos por relevantes pelo ordenamento jurídico.
Os sistemas registrais imobiliários abrangem, segundo Angel Cristóbal Montes, “aqueles conjuntos normativos que em cada país regulam e organizam a propriedade sobre bens imóveis, do ângulo estrito do Direito imobiliário, ou seja, em função do regime jurídico da publicidade imobiliária”, e constituem o mecanismo, estruturado e vinculado pela ideia de publicidade, consentimento e oponibilidade, necessário para que os direitos reais, que se caracterizam pela relação direta do titular com o bem, adquiram eficácia erga omnes.
O funcionamento do mercado pressupõe o intercâmbio de direitos, o que implica em custos de transação, especialmente em função da necessidade dos agentes de obtenção de informações e na capacidade institucional do sistema de titulação da propriedade de seu fornecimento adequado, seja quanto a rapidez, quantidade e qualidade da informação, necessárias para equilibrar a assimetria informativa naturalmente existente entre as partes contratantes.
Os direitos reais, que se caracterizam pela relação direta do titular com o bem, necessitam, para que adquiram eficácia erga omnes, de um mecanismo que se estrutura e se vincula pela ideia de publicidade e oponibilidade.
Esse mecanismo é representado pelos sistemas imobiliários registrais, conceito que abrange, conforme lição de Angel Cristóbal Montes, “aqueles conjuntos normativos que em cada país regulam e organizam a propriedade sobre bens imóveis, do ângulo estrito do Direito imobiliário, ou seja, em função do regime jurídico da publicidade imobiliária”.
Podem ser identificados, em linhas gerais, o sistema de mero registro de documentos, o de registro de títulos e o de registro de direitos.
Nos sistemas de mero registro de documentos (registry of deeds) os contratos privados são objeto de reunião voluntária, sem depuração ou tratamento jurídico, de forma a não fornecer uma completa definição do direito de propriedade, cuja aferição, em eventual conflito, somente se dará fora do sistema, com depuração pelo decurso do tempo ou solução em procedimento judicial. Há reunião de toda informação, sem tratamento ou preocupação do sistema em definir o proprietário, investigação que fica a cargo dos interessados.
Os sistemas de registros de títulos (registry of titles) também se caracterizam pela reunião voluntária de contratos privados sem tratamento jurídico. Agrega-se ao sistema anterior apenas a ideia de prioridade e de mera oponibilidade, no sentido de que a data da inscrição no registro imobiliário passa a determinar, em detrimento da data do título, a preferência na definição do direito de propriedade. Assegura, pois, a oponibilidade dos títulos inscritos frente aos que não tenham ingressado no registro ou cuja inscrição tenha se verificado posteriormente.
Já no sistema de registro de direitos (registry of rights) busca-se a definição completa e exaustiva dos direitos reais inscritos, o que se efetiva pela qualificação jurídica dos títulos voluntariamente apresentados, com relação à sua regularidade formal, assim como prioridade da apresentação e respeito à cadeia de títulos registrados, seja com relação à perfeita identificação do imóvel ou quanto aos seus titulares, o que confere ao direito inscrito, em atenção às peculiaridades de cada ordenamento, presunção de legitimidade ou fé pública registral. A isto correspondem os princípios registrários da instância (ou rogação), da prioridade, da especialidade, da continuidade (ou trato sucessivo) e, em alguns ordenamentos, o da fé pública registral. Nos sistemas de registro de direitos, a qualificação será mais rigorosa, em cada ordenamento jurídico, na proporção dos efeitos conferidos pela legislação correspondente.
Dentre as diversas maneiras como tais sistemas de registro de direitos podem ser classificados mostra-se de maior utilidade a que os relaciona em função de uma perspectiva latina, cujo foco está na oponibilidade e na presunção de legitimidade, ou de uma perspectiva germânica, focada na fé pública, distinção cujo efeito prático se revela em função da opção pelo interesse a ser protegido em caso de conflito ou questionamento de direitos entre quem se apresenta como “verdadeiro proprietário” frente ao titular registral. Os sistemas de inspiração latina, fundados na segurança do direito, optam pela proteção do verdadeiro proprietário, cuja aferição se efetiva em procedimento judicial. Já os sistemas de origem germânica optam pela segurança do tráfico, conferindo proteção ao proprietário segundo o registro.
Discute-se quanto à eficiência de cada um dos sistemas, o que demanda trabalho mais aprofundado, tendo em vista que a depuração dos direitos e a certeza jurídica que se alcança, como decorrência natural dos sistemas de registro de direitos, deve ser aferida em função de sua efetiva aplicação, frente às peculiaridades de cada país, variando em função da qualidade do serviço prestado, da solidez de suas instituições e da integração ao sistema de parcela significativa dos imóveis, enquanto nos sistemas de registro de documentos ou de títulos essa depuração ocorre com a atuação de agentes externos ao sistema registral, tendentes a atenuar e evitar riscos, o que se dá com os advogados, notários, title agents, bancos ou conveyancers, encarregados da preparação e mediação da contratação privada, assim como pela utilização de serviços privados de assessoramento e seguro, que dão ensejo à criação de arquivos privados informatizados (title plants), não sendo razoável a afirmação, pura e simples, de que um deles venha a produzir, sempre, efeitos práticos superiores aos do outro.
- Registros contratuais e administrativos.
Destaca Benito Arruñada em trabalho recente (Instituciones del intercambio impersonal – Teoría y método de los registros públicos) que os registros públicos (imobiliários e empresariais), abertos a todos, fundados na publicidade e voltados para a redução dos custos de transação no mercado, apresentam não somente sua função típica de formalização imobiliária e empresarial privada e contratual, e como tal, essencialmente privada.
Aos registros se inclui, cada vez mais, uma formalização autenticamente pública, que Arruñada denomina “formalização administrativa” caracterizado, segundo o autor citado, pelo serviço que presta a organizações governamentais, e que afeta, entre outros, os processos vinculados aos trâmites tributários, a seguridade social e a concessão de licenças para a abertura de negócios e de permissões relativas ao uso do solo.
Adverte que é comum considerar-se a formalização contratual e a administrativa como um único fenômeno, sem a necessária percepção de que sua natureza é diversa: privada e pública.
E, de maior relevo para os fins desta exposição, discorre sobre os custos e benefícios de integrar a formalização contratual e administrativa, no sentido de que a coexistência destes dois tipos de formalização traz dúvidas sobre como interagem, pois, surgem economias e “deseconomias” quando se integram, como qual o tipo de formalização que se deve priorizar (já que uma pode ser condição prévia da outra); ou em que medida devem organizar-se independentemente.
É nesse panorama que se deve pensar em como aproveitar a INOVAÇÃO TECNOLÓGICA, o que leva ao tema dos sistemas de registro eletrônico e ao risco, que trago a apreciação deste seleto público de que a criação de um registro/cadastro/banco de dados único/integrado/multifuncional, possa descaracterizar nosso registro de imóveis, de registro de direitos para mero registro de documentos.
O que se verifica hoje no Brasil é que o registro de imóveis, pautado na formalização contratual regrada pela Lei dos Registros Públicos, dispõe de uma base de dados referente aos direitos reais que, com algumas imperfeições, se mostra confiável e eficaz.
Dessa fiabilidade resulta o interesse da Administração Pública, em especial da Receita Federal, na utilização e manejo desse banco de dados para a atualização e integração dos cadastros.
Ocorre, no entanto, que embora a integração do registro ao cadastro possa trazer imediata atualização dos cadastros, o sistema registral imobiliário, fundado no registro de direitos, é dinâmico e se desenvolve por meio de regras próprias, necessárias para a garantia da depuração do direito inscrito, procedimento diverso daquele utilizado para a atualização dos cadastros administrativos, com clara potencialidade de descaracterização do sistema registral imobiliário.
O risco é grande e não deve ser ignorado ou minimizado.
Os cadastros administrativos devem ter acesso fácil e sem encargos aos dados do registro imobiliário, o que deve ser facilitado por lei para que a Administração Pública desenvolva suas funções, mas isto não implica necessariamente na desconstrução de um sistema de registros públicos forte.
O caminho mais eficaz é o fortalecimento das instituições de intercâmbio impessoal, e como tal os registros públicos, dentre os quais o registro imobiliário, que, eficaz e fiável, poderá, a um só tempo, servir com adequação e modicidade, ao cidadão, à Administração e ao mercado.
Ideia que se apresenta, no momento, para a Comissão de Juristas da Desburocratização é a alteração normativa para a adoção, no Brasil, da fé púbica registral, com a maior proteção do proprietário segundo o registro.
- Considerações Finais.
Agora, que o Sistema de Registro Eletrônico deixou de ser futuro para se mostrar presente, salta aos olhos a atualidade dessa discussão. A meu ver, a constatação de que todos nós que vivenciamos os registros e as notas, e não somente o Registro Imobilíário, não fizemos com o cuidado e atenção merecido nossa lição de casa.
Mas ainda é tempo de colocar as coisas em ordem.
E a preocupação, hoje, é saber se a criação de um registro/cadastro/banco de dados único/integrado/multifuncional, não poderá descaracterizar nosso registro de imóveis, de registro de direitos para mero registro de documentos.
[blockquote style=”2″]E, no âmbito da desburocratização, saber se essa integração da formalização contratual (registros públicos) com a formalização administrativa será, a médio e longo prazos, de real avanço para o país e para a cidadania. E para isto é fundamental a preservação da estruturação de nossos registros públicos da forma como definida e garantida na Constituição Federal do Brasil, quiçá aperfeiçoado com a adoção da fé pública registral.[/blockquote]
BIBLIOGRAFIA
ARRUÑADA, Benito.Sistemas de titulación de la propiedad – Un análisis de su realidad organizativa, Lima, Palestra, 2004, p. 48/49.
Instituciones del intercambioimpersonal – Teoría y método de los registros públicos, Cizur Menor, Civitas (Thomson Reuters), 2013, p. 304-323.
CRISTÓBAL MONTES, Angel.Direito Imobiliário Registral, Porto Alegre, safE, 2004, p. 211.
SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado dos registros públicos, Brasília, ed. Brasília Jurídica, 1995
* Luís Paulo Aliende Ribeiro é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Doutor em Direito Públicos pela Universidade de São Paulo – Faculdade de Direito. Foi juiz auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.
Fonte: CN| REGISTRADORES