Decisão reafirma validade jurídica de título emitido e assinado eletronicamente, ainda que autenticação tenha ocorrido por entidade não credenciada na ICP-Brasil
Por Juliana Abrusio – sócia da área de Direito Digital e Proteção de Dados
João Victor da Silva – advogado da área de Direito Digital e Proteção de Dados
Chiara Battaglia – advogada da área de Direito Digital e Proteção de Dados
A validade jurídica dos documentos eletrônicos é temática já conhecida dos tribunais e comum a variados setores e aplicações, que incluem desde o aceite a Termos de Uso até a celebração de compromissos de compra e venda, contratos de prestação de serviços, entre tantos outros documentos.
O amplo acesso a ferramentas que permitem a assinatura eletrônica combinado à celeridade propiciada por essa forma de autenticação popularizaram seu uso, reforçando a importância dessa discussão e da consolidação dos entendimentos.
A Medida Provisória n. 2.200-2/2001 estabelece a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (“ICP-Brasil”) e o princípio do não repúdio a documentos assinados eletronicamente com o uso de certificados emitidos no contexto da ICP-Brasil Contudo, o seu artigo 10, § 2º, também permite o uso de outras formas de comprovação de autenticidade e integridade de documentos eletrônicos, desde que aceitas pelas partes envolvidas.
Assim, apesar da autorização legal, a validade jurídica da autenticação não certificada via ICP-Brasil é comumente questionada junto aos tribunais – que, de modo geral, já era reconhecida pelos tribunais estaduais[1].
Recentemente, a terceira turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) enfrentou o tema e reconheceu a validade jurídica de assinatura eletrônica não certificada por meio REsp 2.150.278[2], sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi. Vejamos o histórico do caso:
- A controvérsia se referia à validade da assinatura eletrônica aposta em cédula de crédito bancário, a partir de certificado não emitido pela ICP-Brasil. A ação foi extinta sem julgamento de mérito, sob a justificativa de que a assinatura eletrônica, realizada em uma plataforma de autenticação privada, não poderia garantir a autenticidade e evitar fraudes, por não ser vinculada à ICP-Brasil.
- No entanto, ao reformar a decisão, a ministra Nancy Andrighi reconheceu que a Medida Provisória não exige o uso da certificação ICP-Brasil para a validade das assinaturas, destacando que a escolha do método cabe às partes envolvidas.
- Assim, a decisão reconhece que negar a validade jurídica de um título emitido e assinado eletronicamente, apenas pelo uso de certificado não credenciado pela ICP-Brasil, seria equivalente a negar validade jurídica a um cheque emitido pelo portador cuja firma não foi reconhecida em cartório – formalismo incompatível com a realidade do mundo virtual.
- Dessa forma, a decisão reconheceu que o acordo entre as partes sobre o mecanismo de assinatura eletrônica deve ser respeitado, desde que garantidos os padrões de integridade e autenticidade necessários – como foi o caso, vez que o documento foi criptografado, assegurando sua integridade durante o processo de validação.
O Acórdão, portanto, reconhece a evolução tecnológica na comunicação e na celebração de negócios jurídicos, bem como seus necessários reflexos na interpretação da lei. Como exemplo, aborda a necessidade de duas testemunhas para conferir executividade a títulos extrajudiciais, que já vinha sendo relevada pelo STJ antes mesmo da positivação dessa possibilidade em 2023 (art. 784, § 4º, do Código de Processo Civil).
O que vem pela frente?
Vale notar que a iniciativa de atualização do Código Civil também deve contemplar a validade das assinaturas eletrônicas; nesse sentido, foi proposto um capítulo específico sobre o tema, contendo definições inspiradas na Lei Federal n. 14.063/2020, que dispõe a respeito do uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos.
Contudo, os avanços da tecnologia e os seus impactos no direito não se restringem à assinatura eletrônica. Outras tecnologias, que conferem celeridade e eficácia às tratativas também vêm ocupando mais espaço, a exemplo dos smart contracts, que consistem na construção e automatização do negócio jurídico via software, armazenado e regido por blockchain, operando com base em regras predefinidas.
Como exemplo, é possível citar a desjudicialização da execução civil, como proposta pelo Projeto de Lei n. 6204/2019, que tem como objetivo simplificar e acelerar o processo de execução de dívidas, transferindo certas responsabilidades do Poder Judiciário para agentes extrajudiciais, como tabeliães de protesto. Nesse caso, a implementação dos Smarts Contratcts serviria, por exemplo, para:
- Automatizar a execução de dívidas: os termos do contrato poderiam ser programados para executar automaticamente ações como penhora de bens ou transferência de propriedade, sem a necessidade de intervenção humana;
- Aumentar a transparência e segurança: a utilização de blockchain pode garantir que todas as transações e execuções sejam registradas de forma imutável e transparente; e
- Reduzir custos e tempo: A automação pode diminuir significativamente os custos e o tempo envolvidos na execução de contratos em razão da automatização.
Assim, o impacto da tecnologia sobre a celebração e execução dos negócios jurídicos é evidente e representa verdadeira mudança de paradigma. O que vem pela frente? A tecnologia nos dirá!
[1] A título exemplificativo, é possível citar decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, em que foi reconhecida expressamente a validade jurídica da assinatura digital em títulos executivos, ainda que certificada por autoridade não credenciada perante o ICP-Brasil (a esse respeito, v. TJSP. Acórdão. Processo nº 2027706-84.2024.8.26.0000. Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado. Relator (a): Júlio César Franco. Data do julgamento: 04/03/2024; TJSP. Acórdão. Processo nº 2132189-05.2023.8.26.0000. Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Privado. Relator (a): Nelson Jorge Júnior. Data de publicação: 26/08/2023), bem como do Tribunal de Justiça do Paraná (v. TJPR. Acórdão. Processo nº 0003204-39.2024.8.16.0083. Órgão Julgador: 13ª Câmara Cível. Relator (a): Fabio Andre Santos Muniz. Data do julgamento: 25/09/2024.) e do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (v. TJMS. Acórdão. Processo nº 0804217-74.2022.8.12.0001. Órgão Julgador: 5ª Câmara Cível. Relator (a): Geraldo de Almeida Santiago. Data do julgamento: 24/03/2024).
[2] REsp n. 2.150.278/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/9/2024, DJe de 27/9/2024.
Sobre Juliana Abrusio
Especialista em Tecnologia, Privacidade e Proteção de Dados, Cibersegurança e Inteligência Artificial. Profissional reconhecida por diversos diretórios jurídicos (Chambers, Legal 500 América Latina, Latin Lawyers, GDR, Escolha do Cliente, Mulheres no Direito Empresarial, Who’sWho, Análise). Doutora em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Mestre pela Universidade de Roma Tor Vergata (Itália), pós-graduado lato sensu pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócia do escritório de advocacia Opice Blum, Bruno, Abrusio, Vainzof (2002-2020); Diretora Jurídica Adjunto na FIESP (2023); Conselheira na OAB-SP (Seção São Paulo – 2021-2024); Coordenador de Inovação e Tecnologia na Universidade Mackenzie (2020-2021). Diretora do Instituto Legal Grounds (2020-2021). Professora de Direito Digital e Proteção de Dados na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora convidado na Fundação Dom Cabral, PECE/Poli da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Comitê de Direito Digital e Proteção de Dados do CESA (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados) (desde 2014); Presidente da Comissão de Economia Digital e Regulação do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) (desde 2022); Vice-Presidente da Comissão de Estudos em TI e Inteligência Artificial do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) (2017-2020). Autor do livro “Proteção de Dados na Cultura do Algoritmo, Ed. D´Placido, 2020”; “Covid-19: Impactos Jurídicos na Tecnologia, Ed. D´Placido, 2020”; “Marco Civil da Internet – Lei 12.964/2014”. Organizadora do livro “Educação Digital” (2015, Ed. RT Thonsom Reuters), entre outros. Autor de diversos artigos sobre direito e tecnologia e Colunista do Crypto ID.
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