O artigo 33 da Lei francesa de Reforma da Justiça, promulgada pelo presidente Macron em 25 de março de 2019, proíbe expressamente a indexação de decisões dos tribunais da França e os nomes dos respectivos magistrados, evitando que esses dados sejam “reutilizados com a finalidade ou efeito de avaliar, analisar, comparar ou prever suas práticas profissionais reais ou alegadas”, sob pena de prisão do infrator por até cinco anos.
Por Solano de Camargo*
Em outras palavras, o legislador francês proibiu as soluções de inteligência artificial (IA) baseadas nos repositórios jurisprudenciais da França.
A razão para essa medida extrema se baseou no temor dos magistrados de terem seus entendimentos comparados entre si, além de permitir uma suposta manipulação do resultado dos processos, através da escolha das cortes mais favoráveis ao julgamento do litígio (forum shopping).
Até onde se sabe, é a primeira vez que um Estado proíbe a utilização da IA, inclusive, com ameaça de prisão dos eventuais infratores.
A polêmica surgiu após uma iniciativa comum na maioria das democracias da atualidade, que é a disponibilização online dos acervos de jurisprudência dos tribunais franceses para quaisquer interessados.
Esse mesmo tipo de acesso de dados judiciais permitiu um sem número de iniciativas de IA nos EUA, no Reino Unido e até mesmo no Brasil, onde alguns estudos têm sido liderados pelo próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli.
O nefasto espectro da censura sempre pairou sobre o desenvolvimento científico. Em 2011, nos EUA, o Conselho Consultivo Nacional de Biossegurança recomendou a duas das mais importantes revistas científicas do mundo (Science e Nature) que não publicassem algumas informações relativas às pesquisas com o vírus da gripe aviária (H5N1).
O receio do governo americano foi que essas informações poderiam auxiliar grupos terroristas na transmissão do vírus em larga escala.
No passado, Nicolau Copérnico preferiu que aguardassem sua morte (1543) para que o mundo tomasse conhecimento de suas pesquisas, onde descreveu que a Terra girava em torno do sol e não o contrário. Em 1633, a Igreja Católica obrigou Galileu Galilei a negar suas observações ao telescópio, que provavam que Copérnico estava correto. E pela mesma defesa do sistema heliocêntrico, Giordano Bruno ardeu na fogueira da inquisição, em 1600.
A nova lei francesa, promulgada em meio a um enorme esforço de implantação das políticas do Regulamento Geral de Proteção de Dados (chamado de “GDPR”) no âmbito da União Europeia, foi imediatamente alvo de diversas críticas, como se Galileu estivesse novamente sob julgamento.
Em diversos aspectos, a lei francesa tem sido vista como uma inaceitável forma de censura. Porém, do ponto de vista prático, a lei parece ter o mesmo efeito que a sentença imposta à Galileu: ela não fará com que o sol passe a girar em volta da Terra.
Em primeiro lugar, a mera supressão do nome do magistrado não é suficiente para impedir os algoritmos de identificar o órgão ou o juiz que proferiu a decisão.
Numa época em que se relacionam incontáveis bancos de dados (big data) e se preveem padrões de consumo, criam-se soluções de reconhecimento facial ou mesmo se programam veículos auto tripulados, é absolutamente irreal imaginar que os padrões de escrita, de fundamentação ou de estilo de um determinado juiz não possam ser identificados.
Em segundo lugar, mesmo que o governo francês consiga impedir o processamento dos milhares de julgamentos já disponibilizados de forma online aos usuários, o posicionamento de qualquer magistrado pode facilmente ser obtido manualmente, por meio de pesquisas que já são feitas há décadas por mão de obra analógica (como os versáteis estagiários).
Em terceiro lugar – e talvez a mais contundente das críticas – se baseia nos pilares da República e seus ideais de liberté, egualité et fraternité: como poderia o Estado francês proibir seus cidadãos de interpretar dados públicos, disponibilizados justamente pelo próprio judiciário?
Aparentemente, o artigo 33 da Lei francesa de Reforma da Justiça corre o sério risco de ser incluído no panteão das leis mais esdrúxulas da Terra, como aquelas vigentes em algumas cidades italianas, em que morrer é ilegal; ou da Suíça, em que se proíbe a posse de apenas um peixinho dourado (só é legal a posse de dois ou mais); ou do Japão, em que dançar após a meia-noite é permitido tão somente se as luzes estiverem acesas.
*Solano de Camargo é Doutor em Direito Internacional pela USP, bacharel em direito francês pela Faculdade de Direito de Lyon e sócio da Lee, Brock e Camargo Advogados (LBCA).
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